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UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

O Futuricídio


Viriato Soromenho-Marques
Professor catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Foi a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) quem introduziu, na milenar e masculina tradição filosófica do Ocidente, a categoria de "natalidade", como uma das dimensões da "condição humana". A condição humana é o horizonte, incerto e plural, onde se constitui e realiza a vida coletiva. Todos nós somos fragmentos interessados e utentes participativos da condição humana. 
A natalidade impõe-se na medida em que os humanos, sendo mortais, renovam-se através do ciclo temporal das gerações. Cada geração desembarca no mundo trazendo consigo a frescura do espanto e a promessa da sua renovação, através das suas ideias e ações. Por isso, insiste Arendt, se há alguma tarefa fundamental da política ela é a de garantir que cada criança, quando nasce, tem um chão mundano que a acolha. A essência da política é, por isso, a preservação do mundo, em todas as suas facetas, como condição necessária e suficiente para que cada criança, cada geração tenha condições para florescer e acrescentar a novidade que lhe pertencer ao património da história universal.

Um dos mais importantes climatologistas mundiais, o alemão H.J. Schellnhuber em entrevista a Susete Francisco (DN, 13 10 22) alertou para a forte probabilidade de, já em 2050, a temperatura média global (terra e oceanos) subir para + 2,2ºC, em relação ao período pré-industrial (1880-1900). Hoje, a temperatura média é de + 1,1ºC, em relação a esse período. Isso significa que nos próximos 30 anos vamos aumentar a temperatura da Terra a uma média de +0, 34º C por década. Se consideramos que entre 1880 e 1981 a média de aumento por década foi de + 0,08ºC, e que de 1981 a 2021 o valor por década subiu para + 0, 18ºC, a inevitável conclusão é a de que estamos numa rota de aceleração descontrolada. Que fazem os governos perante este desafio existencial da crise ambiental e climática que ameaça, ainda neste século, tornar grande parte do planeta inabitável? Mergulhados numa guerra que deveria ter sido evitada diplomaticamente, e que está a ser prolongada até ao abismo de uma escalada catastrófica, os governos, incluindo os da UE, regridem numa intensificação do uso de combustíveis fósseis. Com raiva, fúria e desrazão, os governos, sem exceção, traem a missão essencial da política. Aceleram a destruição ecológica, atacando na natalidade a parte mais frágil e sagrada da condição humana. Os novos recém-chegados ao mundo, mesmo os que nascem em palácios, são hoje náufragos de um futuro que lhe está a ser roubado, diariamente, pelas elites da política e do dinheiro que governam o pandemónio internacional.

É estranho e profundamente injusto que se acuse de vandalismo os jovens que, entre muitos outros protestos, lançam sopa de tomate sobre telas (devidamente protegidas) de grandes pintores, em museus de referência, para exigir o fim do uso de combustíveis fósseis, como parte de uma profunda mudança civilizacional. Esse tipo de ações reflete, pelo contrário, o elevado apreço pela arte por parte de quem os realiza, visando contrastar o acomodamento generalizado da sociedade e dos media perante a vertiginosa destruição do mundo comum, que é o berço da arte e da vida em geral. Quero propor, por isso, que quem governa hoje o mundo está a cometer o mais horrendo e inédito crime contra a humanidade: futurocídio. Contra a implacável aniquilação do futuro, a revolta dos que o querem salvar, sejam eles jovens ou de qualquer idade, será sempre o lado certo do que resta da dignidade humana.

Publicado inicialmente no DN em 22 de outubro de 2022

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