José d' Encarnação
Professor Catedrático, desde 1991, na Universidade de Coimbra onde ingressou como docente em 1976. Está aposentado desde Julho de 2007. Membro do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto.
Não será invulgar, em casa de
família, a existência de um recanto mais íntimo para as imagens de devoção . Um pequeno oratório aonde, de vez em quando, um
membro da comunidade familiar se desloca para uma prece ou, até, para acender
uma vela, em ocasiões de maior sentimento religioso.
Prende-se a religião a esses gestos,
que unem o humano ao divino (religar = unir), e que estão indelevelmente
presentes em todos os tempos e em todas as crenças.
Tinham os Romanos o lararium, o cantinho expressamente
dedicado aos deuses Lares, que protegiam a habitação .
Das escavações feitas na cidade de Conimbriga resultou o achamento de vários
desses modestos altares,[1] réplicas
em miniatura (diríamos) do altar que, caso tivesse posses e poderes para tal, algum
elemento da família teria logrado mandar publicamente erguer. Assim, porém, o
culto restringiu-se ao seio familiar, onde se veneraram – e esses foram os
achados – Fortuna, Apollo, Minerva, Liber
Pater, os Lares da própria cidade e o seu Génio protec tor…
E na villa de Centum Celas se considerou ter existido mesmo esse lararium, pois se encontraram altares
reunidos no mesmo espaço, ainda que as inscrições votivas já estivessem
apagadas pelos maus-tratos recebidos durante séculos.[2]
Resulta, pois, alicia nte imaginarmos o que poderia ter sido a
atitude do pater famílias quando
tomou a decisão – certamente de acordo com os demais membros da sua comunidade
– de escolher a divindade principal do agregado; a troca de impressões acerca dos termos a utilizar e, até, sobre o tamanho
e a tipologia do monumento. Não resisti a essa evocação
quando da cidade de Tongobriga (actual
Freixo, concelho de Marco de Canaveses) também se exumou graciosa árula à deusa
Fortuna. E foi este o texto que redigi:
Gostava de ter ainda mais posses, a
fim de lhe mandar erguer um altar verdadeiro, sobre o qual lhe pudesse imolar
um boi ou cordeirinho de leite. Mas não, não se atreveria a tal, até porque
logo lhe perguntariam: «E onde é que o colocamos, se o templo do fórum se
reveste, sobretudo, da majestade imperial e dos seus númenes protec tores?!...».
Valerius
Paternus olhava, meditabundo, o sol, duma serena tonalidade rosada, a
descer, suave, além, na volúpia quase infantil de se esconder por detrás das
colinas…
Sabia quanto o Sol lhe era propício
no amadurar dos frutos; não ousaria, porém, consagrar-lhe ofertas – que aos
mais nobres e aos iniciados nesses mistérios era múnus ciosamente reservado. À
deusa Fortuna, qual mulher amada, sim, em honra dela mandaria lavrar altar
pequeno mas gracioso, na demonstração
do seu reconhecido carinho e no dos seus familiares, pois também eles usufruíam
agora das benesses que os sacrifícios haviam logrado obter. Fortuna fora-lhe propícia.
Amanhã demandaria a oficina do
canteiro e com ele acertaria pormenores. Queria o altar em dimensões adequadas
ao seu lararium. Singelo, sim; no
granito róseo local; o seu nome, Valerius
Paternus, após a identificação
da deusa. Pôr-se-ia em siglas – toda a gente entendia… – a informação de que a considerava dea sancta, tamanhos haviam sido os benefícios outorgados; o nome
da família, por de mais conhecida na cidade, poderia vir em abreviatura: VAL(erius); gostava do seu cognomen, Paternus, viria por extenso, a sublinhar até o espírito de família;
finalmente, a fórmula habitual: EX V(oto)
P(osuit) – colocou, por à divindade ter feito a promessa.
Assim o pensou, assim o disse ao
canteiro.
– Não queres, antes, V · L · P? – votum
libens posuit?
–
Não. Fortuna sabe bem que o faço de livre vontade. Ah! Mas falta um pormenor!
Queria o capitel bonito! Não apenas
com o fóculo, a simbolizar a sua perene vontade de nele queimar olorosas
essências em sua honra, mas também – gravado em meio de volutas – estilizado
ramo do teixo, sua árvore totémica, protec tora,
cujas propriedades curativas (e mortíferas!...) já os seus antepassados
conheciam…
O canteiro acabara de ajeitar o
altarzinho que Albuia Paterna lhe
encomendara por devoção à Mãe dos
Deuses, Cíbele, uma daquelas divindades de mui ancestral culto no Oriente e
cerimonial apenas acessível a iniciados. E também ali estava – o cliente viria
buscá-lo à tarde – outro altar; este, porém, a I ·
O · M. Todos
conheciam o significado destas siglas: Iovi
Optimo Maximo, Júpiter, o deus maior dos Romanos, o melhor de todos! Até os
indígena s cedo começaram a
venerá-lo, porque, venerando-o, queriam proclamar que de boa mente acatavam as
novas concepções romanas, cientes de que, na verdade, era, afinal, o mesmo
universo em que todos se moviam – e os deuses carreavam esperança…
Paternus
acertou o preço, combinou o prazo.
Quinze dias depois, era grande o
alvoroço dos seus três filhos, Maximus,
Rufinus e Amoena, a mais
pequenina. O avô Quintus Valerius Rufus
explicara-lhes tudo. O cerimonial ia cumprir-se.
Nascia a lua nesse auspicioso mês de
Agosto. Rufinus e Paternus envergavam túnicas brancas e
quiseram ornar suas frontes com verdejante ramo de louro. Sua mulher, Fausta, pusera a túnica rosa preferida; os filhos vestiram de verde e Amoena de rosa, como a mãe.
Solene, o ancião acendeu a vetusta lucerna de bronze, que herdara, Paternus pegou na de barro; atrás, Fausta, Amoena, Maximus e Rufinus. Os instantes eram de mui
respeitoso silêncio, na meditação e
na acção de graças. Pensavam no bom
que era ter a Fortuna do seu lado. Chegado ao lararium, Rufus retirou
suavemente o véu de pura lã. Oh!... Ali estava, como que num trono, o elegante
altar! Fez-se a vénia ritual e o fogo das duas lucernas contagiou o incenso do
fóculo, donde perfumada nuvem se evolou. Não foram precisas palavras. Abraçaram-se,
na intimidade com o Divino. A ceia culminou a cerimónia.
Lá fora, por entre as franças do
arvoredo, brilhante luar de Agosto espreitava, deliciado…
[1] Ana RIBEIRO,
«Manifestações particulares de devoção :
as árulas de Conimbriga», in RIBEIRO, José Cardim
(coord.), Religiões da Lusitânia –
Loquuntur Saxa. Lisboa, p. 193-199.
[2] Helena FRADE, «O lararium da villa romana de Centum Celas», in
RIBEIRO,
José Cardim (coord.), Religiões da
Lusitânia – Loquuntur Saxa. Lisboa, p. 189-191.
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