Destaque

UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

sábado, 18 de agosto de 2018

O altar familiar


José d' Encarnação

Professor Catedrático, desde 1991, na Universidade de Coimbra onde ingressou como docente em 1976. Está aposentado desde Julho de 2007. Membro do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto.
            Não será invulgar, em casa de família, a existência de um recanto mais íntimo para as imagens de devoção. Um pequeno oratório aonde, de vez em quando, um membro da comunidade familiar se desloca para uma prece ou, até, para acender uma vela, em ocasiões de maior sentimento religioso.

            Prende-se a religião a esses gestos, que unem o humano ao divino (religar = unir), e que estão indelevelmente presentes em todos os tempos e em todas as crenças.
            Tinham os Romanos o lararium, o cantinho expressamente dedicado aos deuses Lares, que protegiam a habitação.
            Das escavações feitas na cidade de Conimbriga resultou o achamento de vários desses modestos altares,[1] réplicas em miniatura (diríamos) do altar que, caso tivesse posses e poderes para tal, algum elemento da família teria logrado mandar publicamente erguer. Assim, porém, o culto restringiu-se ao seio familiar, onde se veneraram – e esses foram os achados – Fortuna, Apollo, Minerva, Liber Pater, os Lares da própria cidade e o seu Génio protector…


            E na villa de Centum Celas se considerou ter existido mesmo esse lararium, pois se encontraram altares reunidos no mesmo espaço, ainda que as inscrições votivas já estivessem apagadas pelos maus-tratos recebidos durante séculos.[2]
            Resulta, pois, aliciante imaginarmos o que poderia ter sido a atitude do pater famílias quando tomou a decisão – certamente de acordo com os demais membros da sua comunidade – de escolher a divindade principal do agregado; a troca de impressões acerca dos termos a utilizar e, até, sobre o tamanho e a tipologia do monumento. Não resisti a essa evocação quando da cidade de Tongobriga (actual Freixo, concelho de Marco de Canaveses) também se exumou graciosa árula à deusa Fortuna. E foi este o texto que redigi:

            Gostava de ter ainda mais posses, a fim de lhe mandar erguer um altar verdadeiro, sobre o qual lhe pudesse imolar um boi ou cordeirinho de leite. Mas não, não se atreveria a tal, até porque logo lhe perguntariam: «E onde é que o colocamos, se o templo do fórum se reveste, sobretudo, da majestade imperial e dos seus númenes protectores?!...».
            Valerius Paternus olhava, meditabundo, o sol, duma serena tonalidade rosada, a descer, suave, além, na volúpia quase infantil de se esconder por detrás das colinas…
            Sabia quanto o Sol lhe era propício no amadurar dos frutos; não ousaria, porém, consagrar-lhe ofertas – que aos mais nobres e aos iniciados nesses mistérios era múnus ciosamente reservado. À deusa Fortuna, qual mulher amada, sim, em honra dela mandaria lavrar altar pequeno mas gracioso, na demonstração do seu reconhecido carinho e no dos seus familiares, pois também eles usufruíam agora das benesses que os sacrifícios haviam logrado obter. Fortuna fora-lhe propícia.
            Amanhã demandaria a oficina do canteiro e com ele acertaria pormenores. Queria o altar em dimensões adequadas ao seu lararium. Singelo, sim; no granito róseo local; o seu nome, Valerius Paternus, após a identificação da deusa. Pôr-se-ia em siglas – toda a gente entendia… – a informação de que a considerava dea sancta, tamanhos haviam sido os benefícios outorgados; o nome da família, por de mais conhecida na cidade, poderia vir em abreviatura: VAL(erius); gostava do seu cognomen, Paternus, viria por extenso, a sublinhar até o espírito de família; finalmente, a fórmula habitual: EX V(oto) P(osuit) colocou, por à divindade ter feito a promessa.
            Assim o pensou, assim o disse ao canteiro.
            – Não queres, antes, V · L · P? – votum libens posuit?
            – Não. Fortuna sabe bem que o faço de livre vontade. Ah! Mas falta um pormenor!
            Queria o capitel bonito! Não apenas com o fóculo, a simbolizar a sua perene vontade de nele queimar olorosas essências em sua honra, mas também – gravado em meio de volutas – estilizado ramo do teixo, sua árvore totémica, protectora, cujas propriedades curativas (e mortíferas!...) já os seus antepassados conheciam…
            O canteiro acabara de ajeitar o altarzinho que Albuia Paterna lhe encomendara por devoção à Mãe dos Deuses, Cíbele, uma daquelas divindades de mui ancestral culto no Oriente e cerimonial apenas acessível a iniciados. E também ali estava – o cliente viria buscá-lo à tarde – outro altar; este, porém, a I · O · M. Todos conheciam o significado destas siglas: Iovi Optimo Maximo, Júpiter, o deus maior dos Romanos, o melhor de todos! Até os indígenas cedo começaram a venerá-lo, porque, venerando-o, queriam proclamar que de boa mente acatavam as novas concepções romanas, cientes de que, na verdade, era, afinal, o mesmo universo em que todos se moviam – e os deuses carreavam esperança…
            Paternus acertou o preço, combinou o prazo.
            Quinze dias depois, era grande o alvoroço dos seus três filhos, Maximus, Rufinus e Amoena, a mais pequenina. O avô Quintus Valerius Rufus explicara-lhes tudo. O cerimonial ia cumprir-se.
            Nascia a lua nesse auspicioso mês de Agosto. Rufinus e Paternus envergavam túnicas brancas e quiseram ornar suas frontes com verdejante ramo de louro. Sua mulher, Fausta, pusera a túnica rosa preferida; os filhos vestiram de verde e Amoena de rosa, como a mãe.
            Solene, o ancião acendeu a vetusta lucerna de bronze, que herdara, Paternus pegou na de barro; atrás, Fausta, Amoena, Maximus e Rufinus. Os instantes eram de mui respeitoso silêncio, na meditação e na acção de graças. Pensavam no bom que era ter a Fortuna do seu lado. Chegado ao lararium, Rufus retirou suavemente o véu de pura lã. Oh!... Ali estava, como que num trono, o elegante altar! Fez-se a vénia ritual e o fogo das duas lucernas contagiou o incenso do fóculo, donde perfumada nuvem se evolou. Não foram precisas palavras. Abraçaram-se, na intimidade com o Divino. A ceia culminou a cerimónia.
            Lá fora, por entre as franças do arvoredo, brilhante luar de Agosto espreitava, deliciado…
                                                                                              





[1] Ana RIBEIRO, «Manifestações particulares de devoção: as árulas de Conimbriga», in RIBEIRO, José Cardim (coord.), Religiões da Lusitânia – Loquuntur Saxa. Lisboa, p. 193-199.
[2] Helena FRADE, «O lararium da villa romana de Centum Celas», in RIBEIRO, José Cardim (coord.), Religiões da Lusitânia – Loquuntur Saxa. Lisboa, p. 189-191.


Sem comentários:

Enviar um comentário