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  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

segunda-feira, 16 de julho de 2018

O mágico simbolismo de uma árula conimbricense



José d' Encarnação

Professor Catedrático, desde 1991, na Universidade de Coimbra onde ingressou como docente em 1976. Está aposentado desde Julho de 2007. Membro do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto.
Uma árula
            Ainda aqui não demos realce ao tamanho dos monumentos epigráficos nem, de modo especial, à sua tipologia. Sirva-nos, pois, de exemplo, esta conhecida árula achada em Conímbriga.
            Não dispondo nem de verbas nem de espaço, o dedicante optou por uma miniatura, a simbolizar a sua vontade de – se tivesse posses – erigir grande altar de sacrifício. Por outro lado, assim poderia colocá-la no larário familiar, espécie de oratório que – tal como na actualidade é hábito existir em casas cristãs – também existia nas mansões romanas. Um nicho com esses pequeninos altares, a mostrar a devoção a esta ou àquela divindade, agradecendo favor recebido ou na mira de dela obter permanente protecção. Ao lado, poderiam estar igualmente efígies dos antepassados ilustres, também eles zeladores do bem-estar e prosperidade familiares.
            E nós imaginamos, um dia, quase ao cair da tarde, toda a família reunida, ornada com as vestes dos grandes cerimoniais, o paterfamilias de alva túnica, qual sacerdote, ergue nas mãos o altar, pronuncia as palavras de ocasião, ritualmente, e, à vista de todos, com o aplauso de todos, numa prece, deposita-o, solene, no local que lhe fora destinado. Vieram todos os parentes da cidade e alguns, até, das villae dos arredores – que o momento era de confraternização também. E, entronizado o deus, a mesa estava posta, as iguarias excelentes e o convívio noite afora se prolongou…
            Significava, pois, esse altar em miniatura a vontade de, permanentemente, ao deus se oferecerem sacrifícios…

A divindade
            Na árula lê-se o seguinte:[1]:
                                               LIBERO
                                               PATRI
                                               VALERIVS
                                               DAPHI
   NVS
A · L · P ·
            Libero Patri significa «ao Pai Líber», deus itálico da fecundidade, assimilado a Baco.
            A expressão Liber Pater, além de parecer assaz ‘familiar’, abarca um significado maior: a fecundidade, entendida não apenas no sentido próprio de perpetuação da família através de novas e saudáveis gerações (legítimo anseio de todos os tempos e de todos os lares, a sua projecção no futuro, através de filhos e netos…), mas também numa acepção mais ampla, a da prosperidade, palavra que, por demais usada no quotidiano, amiúde se vê despojada do profundo significado que encerra: próspero é o que vence obstáculos, aumenta o seu prestígio, goza o seu bem-estar…
            Que melhor bênção haveria de querer Valério Dafino?!

O dedicante
            Valerius é um nome muito comum na Lusitânia e de que outros testemunhos nos chegaram, até da própria cidade de Conimbriga. Seria, porém, conhecido no seio familiar pelo seu cognomen: Daphinus. E esse nome individualizante é que detém para nós um significado particular, designadamente porque, escrito com ph – em vez de f –, denota um certo snobismo, diríamos hoje, uma vontade de mostrar que se têm ligações, reais ou simbólicas, com a parte oriental do Império, onde, como se sabe, era a língua grega que se falava.
            A adopção de nomes gregos numa província ocidental, como a Lusitânia, não tem que ver obrigatoriamente com uma origem oriental. Era, de facto, quase lendária entre os Romanos a beleza das gentes orientais, nomeadamente porque a estatuária de atletas e de deuses com que tinha entrado em contacto passava essa mensagem de perfeição corporal. Daí que senhor que se prezasse gostasse de ter escrava ou escravo bonitos, a que, logicamente, como lhe competia por lei, dava nome a condizer. Explica-se, assim, a quantidade de nomes gregos patentes na epigrafia lusitana, sem que isso implique uma real existência de Gregos no seu território: trata-se de uma moda, a evidenciar efectivo (ou suposto) nível cultural.[2]
            Daphinus está neste caso. Corruptela de «dáfninos», adjectivo grego formado a partir de «dáfne», que significa o loureiro («stéfanos dáfnes» é a coroa de louros…), mas que se reporta, fundamentalmente, a Dafne, a belíssima filha da Terra e do rio Peneu, que – perseguida por Apolo que a queria seduzir e, um dia, a surpreendeu a praticar o seu desporto favorito, viver ao ar livre – aflita, pediu auxílio aos pais, que a transformaram em loureiro. Não querendo desistir dos seus intentos e em jeito de consolação, Apolo coroou-se com os ramos desse arbusto… Daí que o loureiro tenha passado a simbolizar este deus.
            O nome Dafne está também intimamente a Cloé. Eles são o par amoroso que protagoniza o romance pastoril de Longo de Lesbos: duas crianças que, crescendo juntas, vão despertando para o amor num cenário bucólico…
            Portanto, não foi seguramente inocente a atribuição do nome Daphinus a este membro da gens Valeria, de Conimbriga. Sintoma, consequentemente, de uma cultura literária não despicienda, é-o, também, eloquente pista para lhe determinarmos o estatuto social: Daphinus foi, seguramente, um escravo da família Valeria que, a dado momento, por generosidade do senhor, pelo seu interesse ou pelo pecúlio acumulado que lhe permitiu comprá-la, adquiriu a liberdade. Sabendo nós que aos libertos eram, assaz frequentemente, entregues os negócios dos senhores e que, por via disso, as suas posses não eram de somenos, não causará admiração, assim, que tenha querido ter bem junto de si, na sua casa, um altarzinho ao deus propiciador da prosperidade…



                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Boletim de Estudos Clássicos 58, 2013, p. 147-151.



[1] O estudo mais completo do monumento, da responsabilidade de Georges Fabre e de Robert Étienne, pode ver-se no volume II das Fouilles de Conimbriga (Paris, 1976), nº 13 (p. 33-34). A propósito de Luís Costa, proprietário das Caves de S. João, em S. João da Azenha (Avelãs de Caminho), ter posto uma réplica desta ara no salão principal das suas caves e o desenho dela no rótulo das garrafas de uma das suas colheitas, tive ensejo de referir esta epígrafe na comunicação «Reflexos, no quotidiano, da prístina epigrafia romana», Arqueologia & História 56/57 2004-2005 95-102. Acessível em: http://hdl.handle.net/10316/9912

[2] Sobre este tema: ENCARNAÇÃO, José d', «Da onomástica grega na Lusitânia romana» in TACLA (Adriene Baron) et alii [Orgs.], Uma Trajetória na Grécia Antiga, Homenagem à Neyde Theml, Rio de Janeiro, 2011, p. 301-312.

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