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UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O NOSSO MINOTAURO VERDE



 Viriato Soromenho-Marques
Professor catedrático de Filosofia  na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa*


Numa entrevista recente ao Expresso (30 06 2018), o arquitecto Eduardo Souto Moura interrogado sobre a tragédia do incêndio florestal de 17 de Junho de 2017, respondeu: “A natureza encarrega-se de destruir o que não interessa (…) há uma fotografia aérea do terreno de uma dinamarquesa. É um quadrado verde. Ela plantou carvalhos. O resto é tudo eucaliptos a arder (…) Falhou e ardeu tudo, excepto o quadrado [com carvalhos] da senhora nórdica…”. 


Qualquer leitor que tenha o coração no sítio certo não poderá deixar de concordar com a dolorosa perplexidade do grande arquitecto portuense. Como foi possível Portugal, onde o primeiro eucalipto chegou já bem no século XIX, ser hoje o país com mais área relativa (9% do território) e o quinto em área absoluta ocupada por esta espécie? Depois do ano catastrófico de 2017, esta pergunta não pode ficar sem resposta. Quase meio milhão de hectares ardidos e cerca de 120 vidas horrivelmente perdidas, números sem paralelo com nenhum outro país da OCDE, fazem da questão dos incêndios rurais, uma ferida aberta na nossa identidade como povo. Este país, que já foi um império, é hoje incapaz de proteger o seu território do monstro verde criado pela nossa incúria colectiva.

Um corajoso contributo sobre este enigma chega-nos através do livro co-autorado por João Camargo e Paulo Pimenta de Castro, Portugal em Chamas. Como Resgatar as Florestas (Bertrand). Os autores, cidadãos preocupados e investigadores competentes, fazem as perguntas e procuram dar as respostas, baseando-se em sólida informação empírica. A tese principal é esta (a simplificação é da minha responsabilidade): a expansão do eucalipto resulta da combinação entre dois factores: a) uma indústria poderosa, lucrativa e demasiado influente politicamente; b) um Estado que decidiu deixar o país agro-florestal entregue aos puros mecanismos de mercado, acabando por “governar por omissão”. 

Na minha perspectiva, não é preciso ter lido Milton Friedman para não pedir às empresas que pensem noutra coisa que não nos seus lucros. O que é politicamente chocante é verificarmos como sucessivos governos consentiram em que a “epidemia de eucaliptos” se espalhasse nos minifúndios abandonados como uma infecção, sem qualquer espécie de ordenamento e gestão. O que falhou foi o sistema político. Este Estado, que é poderoso com os mais frágeis e pateticamente impotente perante os grandes problemas e os grandes interesses. Não é preciso subscrever na íntegra este livro para perceber que se trata dum esforço sério e útil. A abundância e virulência dos argumentos falsos ou laterais com que tem sido atacado, revela que deve ter acertado em cheio nalgum alvo sensível…

Resgatar a floresta portuguesa vai durar décadas, mas sem isso, o activo que é o território ficará amputado. A acreditar nas palavras do governo, “agora é que vai ser”. Pura ilusão: os dados oficiais indicam que em 2017 foi batido o recorde de plantação de eucaliptos desde 2013: 18 497 hectares novinhos em folha (contra apenas 402 de sobreiros)! O famoso “petróleo verde” transformou-se num minotauro voraz, instalado nos labirintos de desertos plantados a perder de vista. Lá quase não vive ninguém, mas todos os anos pagamos um pesado imposto na “época dos incêndios”. Em 2017, o minotauro começou a exigir um tributo em sangue. Um país que deixa queimar o seu chão e devorar os seus filhos já não é livre nem soberano.

Viriato Soromenho-Marques

         Publicado no Diário de Notícias, 15 de Julho de 2018, p. 11. 
    
*Integrou o Conselho Económico e Social,  a Comissão Nacional da UNESCO, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, a delegação portuguesa à Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo... Assumiu a coordenação científica do Programa (internacional)  Gulbenkian Ambiente  e foi  Vice-Presidente da rede europeia de conselhos de ambiente (EEAC- European Environmental Advisory Councils) 2010 Integrou, por convite do Presidente da Comissão Europeia, o High Level Group on Energy and Climate Change...

http://viriatosoromenho-marques.com/portal/


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