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UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

quinta-feira, 9 de junho de 2022

O DIVINO E A MORTE

 


Professor Catedrático, desde 1991, na Universidade de Coimbra onde ingressou como docente em 1976. Está aposentado desde Julho de 2007. Membro do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património 

Em todos os tempos, queiramos ou não, a Morte sempre esteve envolvida no mistério impregnado de divino.

           Os epitáfios romanos, mesmo os mais simples, são deveras sintomáticos a esse respeito – e o que encontramos em Terras de Sicó não foge a essa regra.


            Consagra-se a sepultura aos deuses Manes, protectores da pessoa no Além – também porque tal consagração confere ao sepulcro uma sacralidade, que é sacrilégio violar.

           Vem o nome do defunto e também os dos que tiveram a iniciativa de lhe erigir o túmulo – mui provavelmente, lá irão também repousar. Uma forma de salvar o nome do esquecimento!

          Hic situs est, «aqui jaz», no presente do indicativo, com tantos anos de idade!... Como se ali eternamente permanecesse, com a idade com que faleceu.

           «Que a terra te seja leve!». Sim, na segunda pessoa: ao lermos o epitáfio, falamos com o defunto. Ele está connosco!

         Dos monumentos funerários de Conímbriga há um, datável dos anos 130, que merece reflexão especial, dado o seu amplo significado cultural: é a cupa do liberto imperial Públio Élio Januário, falecido aos 40 anos. O epitáfio foi mandado lavrar, a expensas suas, pela esposa, Tibéria Cláudia Cale, «ao marido óptimo» e pelo filho, Públio Élio Efésio, «ao pai modelo de piedade».

            Em primeiro lugar, assinale-se que a tipologia do monumento (veja-se a fotografia, da autoria de Humberto Rendeiro, pertencente ao Arquivo do MMC-MN/DGPC, gentil cedência que muito agradeço) se prende com a tradição funerária de Mérida, donde certamente o defunto veio, para desempenhar em Conímbriga funções que Georges Fabre relaciona com a reorganização financeira levada a efeito pelo imperador Adriano, através dos seus libertos de confiança (cf. «Un affranchi impérial à Conimbriga, P. Aelius Ianuarius (AE 1954, 86)», Revue des Études Anciennes 75 1973 111-125).

        Essa relevância social reflecte-se também não apenas no facto de a família ter acompanhado Januário mas também no modo como sua mulher se identifica, com três nomes, circunstância assaz rara e que se justifica aqui por descender de uma família de libertos de um Tibério Cláudio, o imperador Tibério ou o imperador Cláudio.

          Um terceiro aspecto: terá Januário falecido mesmo com 40 anos? Sabendo nós como esse número detém – em todas as civilizações – um carácter simbólico, de número perfeito (veja-se http://hdl.handle.net/10316/25565), não quererá Calé explicitar assim que seu marido viveu em plenitude? Que foi a sua vida uma vida exemplar?

         Exemplo acabado, portanto, de como o epitáfio – neste caso, também por mencionar os deuses Manes – reflecte o modo como os Romanos encaravam a morte, revestindo-a dum halo místico, é certo, mas conotando-a igualmente com uma continuidade de vida: recordando o que o defunto foi, mantemos viva a sua memória; comungamos na dor e reconfortamo-nos na permanência…

 

            José d’Encarnação

 


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