António dos Santos Queirós
Professor e Investigador, CFUL. Universidade de Lisboa
Nota
Introdutória
Na altura em que a causa ambiental volta a mobilizar
a nova geração de jovens europeus, este livro ganha maior relevância e
utilidade, sobretudo para os educadores e os novos líderes ambientalistas,
incluindo essa juventude.
Ele procura revelar e demonstrar que as sementes da
moderna consciência ambientalista brotaram também nesta finisterra, que é
Portugal e, de forma premonitória, ao longo dos últimos três séculos
enfrentando ventos políticos adversos, alcançaram a Espanha, a Europa e o
Mundo.
Os escritores portugueses integraram nas suas obras
os princípios éticos e morais, as bases científicas, onde se fundamentam a
filosofia do ambiente e as suas éticas e se apontam os caminhos para enfrentar
e superar a crise ambiental.
Este obra corresponde no
essencial ao trabalho de investigação que conduziu à dissertação de mestrado em
Filosofia da Natureza e do Ambiente com o mesmo título, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, sob a orientação do Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques,
defendida em 2001.
Apoiaram o percurso
investigativo outros professores e investigadores de diversos domínios
científicos, aqui mencionados, Adília Alarcão, Cristina Beckert, Galopim
de Carvalho, João Carlos Nunes Correia, João
Evangelista, Jorge de Alarcão, Jorge
Paiva, José Ribeiro Ferreira, Maria Lúcia Lepecki, Pedro Calafate, a maioria dos quais viria
igualmente a colaborar na missão de Centro de Formação de Professores de
Conimbriga_ Cefop.Conimbriga (I&D)_, cujo objetivo científico foi e é de
criar um novo episteme que permita reconstruir uma visão interdisciplinar e
integrada da questão ambiental, incluindo a sua dimensão ética e de moral prática,
disseminando os resultados da investigação na academia, através da formação
contínua de professores e outros profissionais e nos projetos sociais onde
intervêm os agentes políticos, económicos, da comunicação social e da promoção
cultural. Revisto e ajustado na sua forma inicial de ensaio crítico
exploratório de um vasto campo de estudo e reflexão científica, estética e
ética, tem nas relações entre filosofia, ciência e literatura o seu eixo
condutor; após uma edição limitada mas repartida por muitas publicações e
revistas científicas, e a sua internacionalização, surge agora sob a forma de
um livro de divulgação, mas que continua a propor aos investigadores novos
percursos para a construção do conhecimento científico e de uma ética
(bioética) global.
António
dos Santos Queirós
I.
Introdução
1. A categoria do ambiente e a hermenêutica literária.
2. A Nova Literatura e as suas Chaves de Interpretação.
3. A crise de fim de século e a sua relação com o corpus literário
O ensaio de divulgação que nos propusemos realizar_ A contribuição dos
poetas e prosadores portugueses para a moderna consciência ambientalista_
depara-se desde o início com uma inusitada riqueza de contributos, de tal modo
que só um trabalho muito para além deste programa poderá avaliar completamente
o seu alcance e significado.
A escolha do tema deste trabalho só se justifica, então, como contributo
para uma nova frente de investigação,
que conserva, ainda assim, um vasto campo de estudo, delimitado pelo conceito
temporal da modernidade, no sentido de consciência ambientalista que nos é
contemporânea.
Importa assinalar que o conceito de ambiente se constitui e adquire uma
conotação “moderna” quando deixa de significar apenas conservação da natureza e
oposição da cidade ao mundo rural,
enriquecendo-se com novas significações que comportam os valores denotativos
do despertar social perante os perigos da industrialização e a resposta cívica
aos problemas da saúde pública e da sobrevivência da humanidade gerados pela
poluição generalizada e a destruição dos recursos naturais. Ele incorpora
progressivamente uma dimensão científica plural, não só aquela que lhe empresta
a Ecologia, enquanto ciência da relação dos seres com o meio, mas também um
vasto leque de outros domínios científicos, a Geografia e a História quando
estudam a humanização dos grandes quadros naturais, a Biologia que revela a
importância da diversidade dos seres vivos, a Geologia que nos conduz ao
reconhecimento das condições paleoambientais geradoras dos ciclos de extinção e
expansão da biodiversidade... ao mesmo tempo que remete para a necessidade de
avaliar o nosso modelo de crescimento nos planos da ética e da moral.
Falta-nos ainda a distância do tempo histórico para avaliar se o pensamento
ambientalista é capaz de renovar ou substituir as ideologias e doutrinas da
nossa época, constituindo e conservando o seu próprio corpo filosófico, ou,
reduzido a algumas descobertas científicas e propostas ético-políticas avulsas,
será incorporado e dissolvido por elas. Eis uma questão a que voltaremos mais
adiante.
2.
O projeto de estudar os autores portugueses ao longo de sete décadas do
século XX impôs-se, nos seus limites temporais, pala circunstância de os
primeiros escritos e mesmo programas governamentais de conservação da natureza
surgirem já nos finais do século XIX, inicialmente nos países industrializados;
e a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente ter tido lugar no
ano de l972 em Estocolmo, conduzindo em Portugal à criação da Comissão Nacional
do Ambiente_ C.N.A., um ano antes, em 1971. A questão ambiental oficializou-se
então, entrou no discurso político e no quotidiano da comunicação social, as
denúncias e a intervenção no domínio do ambiente passaram a ser reconhecidas
socialmente, sem que a crise ambiental deixasse de se agravar.
Em Portugal o triunfo da revolução democrática do 25 Abril de 1974 tornou
possível que na consciência da nação portuguesa se começasse a ouvir claramente
a impercetível fuga do tema ambiental, num crescendo de crise nacional e
mundial, mas também de resposta cívica, sobretudo das novas gerações, fazendo
intervir outros atores na questão ambiental e alterando profundamente o seu
contexto social e político.
3
Cabe aqui uma referência acerca da importância
concedida à literatura como recurso e instância de educação ambiental. No nosso
país, pese embora a sua utilização no contexto das ações de formação orientadas
pelo Dr. João Evangelista no antigo Instituto Nacional do Ambiente, que o
Centro de Formação de Professores de Conimbriga retomou no início da década de
90, e de alguns textos que mereceram a curiosidade pontual de geógrafos e
biólogos, esta perspectiva tem sido geralmente ignorada pelos especialistas de
ambos os lados - o da Literatura e o do Ambiente. Salvo, talvez, algumas
coletâneas de textos, entre as quais merece destaque o conjunto de volumes
agrupados sob a designação de Portugal, a Terra e o Homem, organizados, primeiro,
por Vitorino Nemésio e, depois, por David Mourão Ferreira e Maria Alzira Seixo
para a Fundação Gulbenkian e as mais recentes conferências na Casa de Alorna e
dos Marqueses de Fronteira, estas na perspectiva de análise das manifestações
da natureza em alguns dos autores contemporâneos, sob orientação de Maria Lúcia Lepecki.
É esse estudo
sistemático, da literatura portuguesa como instância e recurso da questão
ambiental, que nos propomos realizar a partir deste nosso trabalho de ensaio,
mas no contexto de uma mais vasta reflexão filosófica, social e política,
enquadrada pela categoria do ambiente.
4.
Por natureza, os escritores e poetas, os artistas em geral, são dotados de
um grande apego à liberdade de pensamento e a sua sensibilidade recolhe os mais
profundos apelos da terra e do homem. A sua consciência universalista leva-os a
valorizar toda a cultura humana, desde as mais belas obras das civilizações
clássicas, até aos signos misteriosos dos primeiros pintores, das catedrais
góticas à revelação do planeta azul.
Por estas razões, intuem, pressagiam e dão testemunho antecipado dos
problemas e perspetivas que a consciência coletiva de uma época ignora ou
marginaliza como incómodas utopias ou inquietantes denúncias. Leonardo da Vinci
teria deixado nas notas de rodapé do seu plano para o visionário submarino,
como maior das preocupações, a interrogação sobre as consequências que a
intrusão do homem no fundo dos mares poderia trazer para o equilíbrio da vida
oceânica.[1] E António Machado, na Espanha contemporânea, escreveu
as palavras-chave da crise geral que emerge neste fim de século:
“... caminante, no hay camino,
se hace camino al andar...”[2]
Aqui e agora, porque esse trabalho heurístico é globalmente pioneiro,
optámos por anotar e citar os testemunhos menos conhecidos (ou mesmo ignorados)
da obra literária dos nossos criadores contemporâneos, em relação com a moderna
questão ambiental e partilhar a sua experiência estética da natureza, guardando
para um trabalho de maior dimensão a sua inserção intertextual. Como afirma o
coordenador do Guia de Portugal, obra premonitória, à escala universal,
de defesa do Património Cultural e Natural:
“A literatura
apresenta aqui a disciplina, a convergência de esforços e a harmonia das
grandes massas corais. É um uníssono
coro que se ergue ao esplendor e à beleza da velha terra de Portugal”.[3]
A crítica e a análise literária tornaram-se instrumentos indispensáveis
deste trabalho, mas não o seu objeto, assim como a evolução da cultura
portuguesa que lhe subjaz. Dois referenciais se destacam neste processo: as
obras de Óscar Lopes e Eduardo Lourenço, em paralelo com outros especialistas
citados. Sempre que as opiniões expressas pelo autor desta dissertação surgiram
anteriormente publicadas em trabalhos de análise ou crítica literárias, mesmo
quando a elas chegou de forma autónoma, optámos pela citação direta das
passagens em causa, não com o propósito de exibir erudição ou mascarar a falta
de um pensamento ou modo de expressão próprios, mas escrupulosamente por
obediência aos princípios da honestidade intelectual.
Para estes textos compactos solicitamos a atenção e a paciência benévola
dos leitores críticos do nosso trabalho.
Fica então traçado o limite objetivo deste ensaio: Tornar visíveis as pistas que possam conduzir à revelação dos contributos
dos escritores portugueses para a génese da moderna consciência ambientalista e
à redescoberta das suas obras nesta perspectiva, os quais, celebrados embora na
sua dimensão artística, permanecem na sombra enquanto mentores dessa outra
consciência ambiental.
Como
parâmetros, de onde emerge universalmente esta consciência, tomaremos a Proclamação
e os Princípios da Declaração de Estocolmo, em 1972, nomeadamente,
na sua perspectiva ecológica, que postula:
“O homem é simultaneamente obra e artífice do
meio que o rodeia… chegou-se a uma etapa em que, graças à rápida aceleração da
ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, de
inumeráveis maneiras e numa escala sem precedentes, tudo quanto o rodeia…e, no
plano político, proclama no seu Princípio 1: “Ao homem assiste o direito
fundamental à liberdade, à igualdade e ao usufruto de condições de vida
adequadas num meio cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar,
cabendo-lhe o dever solene de proteger e melhorar o meio para as gerações
presentes e futuras”.[4]
“Quando oiço
«isto é um país de poetas», lembro-me logo de outra coisa que o país também é:
de romancistas”.[5]
1.
Não constituindo objeto deste ensaio o estudo da cultura portuguesa e da
sua história literária, é óbvio que não pode nem quer alhear-se das suas
problemáticas.
Eduardo Lourenço terá apreendido, primeiro que qualquer outro pensador, o
advento de um novo período cultural no nosso país, que abria caminho por entre
o confronto dualista que colocava frente a frente os intelectuais afetos ao
regime fascista, que invocavam os valores do cristianismo, versus a oposição, largamente influenciada pelo
marxismo e pela estética neorrealista, pese embora a importância cultural dos
escritores dificilmente enquadráveis numa determinada tendência. Os paradigmas
do que denomina a “Nova Literatura” situa-os entre A Sibila (1953), de
Agustina Bessa Luís, e Rumor Branco (1963), de Almeida Faria.
Com visível otimismo saudou a sua original modernidade.
“Nem desinteresse pelo lá-fora cultural e
literário, nem idolatria. …a novidade é
que desta vez a ressonância é de pura superfície, a imitação quase só reduzida
a certos aspectos formais nalguns…Bessa Luís, Cardoso Pires, ou Almeida Faria”.[6]
E definindo a sua especificidade literária:
“…admirável anacronismo,” alimentando-se“…da
nossa realidade mais visível…”, incomum no contexto das literaturas
contemporâneas“…cujo grande tema é a desmontagem e a contestação ao nível mais
radical, o da linguagem mesmo_ do que a literatura foi ou quis ser”.[7]
Portugal e Espanha, esmagados pelas ditaduras, económica e socialmente
retrógradas, respirando através da cultura os primeiros ares das novíssimas
liberdades criativas. Aprendendo a servir-se das conquistas formais, estéticas
e estruturais do modernismo e do pós-modernismo, mas continuando a escrever
sobre a terrível e heroica aventura da condição humana, num tempo universal mas
enraizado no drama da nação portuguesa.
E prossegue Eduardo Lourenço.
“A Nova
Literatura é uma enorme parábola dessa ausência, mas como esta ausência pode
efetivamente mascarar-se sob formas aceitáveis e até fascinantes, ela é a nossa
verdadeira vida”.[8]
Passa em seguida à diferenciação da Nova Literatura, face ao movimento
neorrealista, cujo proselitismo ético, das “soluções positivas“, questiona, e
precisa o seu …”tema central (e obsessão quase única do Ocidente na poesia e no
romance) do amor, ou, mais genericamente, da relação erótica…”[9]
2.
Julgamos que a definição deste novo contexto cultural e a sua assumida
contestação das ideologias devem ser prudentemente analisadas, porque se há
substância capaz da mais sofisticada e camaleónica metamorfose, essa é a que
constitui o corpo doutrinário das ideologias dominantes.
Mas o valor inquestionável da reflexão de Eduardo Lourenço e a matriz da
sua notável lucidez está na forma como concebe e aplica o seu policódigo
interpretativo. Reconheçamo-lo neste comentário paradoxal acerca da autora da Sibila .
“Pouco
importa que uma leitura de sentido imediato ou o comportamento ideológico
ostensivo de uma autora como Bessa- Luís assinalem a sua obra como
inequivocamente reacionária. Até importa mais do que o que ela pensa. É caso
para dizer que não é reacionário quem quer. A autora da Sibila pode por vezes
reenviar-nos ao paraíso arcaico da «roca e do fuso», uma tal convicção,
ingenuidade ou pensada e profunda provocação, são pouca coisa ao lado da
descrição da desordem sentimental, da crueldade das «relações humanas», da
visão demoníaca do dinheiro que das suas páginas se levanta desmentindo sem
cessar a litania azul da nossa celebérrima e trágica «brandura de costumes». O
que Bessa -Luís mostra, importa mais do que ela «pensa»”[10].
Com notável perspicácia e o talento de tornar simples de entender o que é
complexo de analisar, Maria Lúcia Lepecki chama a atenção para a mestria dos
nossos prosadores (- poetas), na gestão económica e rigorosa da sua “enxuta”
escrita, mas também para as “volutas discursivas” de outros “redondos” textos,
onde, em ambos, o implícito é adequadamente expresso, quantas vezes “Para (não)
dizer o contrário”.[11]
Somos de opinião que estas chaves interpretativas são muito importantes
para orientar a nossa análise das obras do novo período literário e da própria
atualidade, estabelecendo as relações evidentes, mas também as “invisíveis,“
com a questão ambiental. É como se pedíssemos a nós mesmo e aos nossos
pacientes interlocutores, leitores imaginários e reais, que percorram as novas
imagens literárias, que vamos recolher, usando alternadamente a visão natural
e, em certas sequências, recorrendo aos artefactos pós-modernos, qualquer coisa
entre os óculos tridimensionais, os binóculos de infravermelhos e os capacetes
da realidade virtual. Ou, dito de outro modo, procurando descobrir os percursos
entrecruzados por onde a palavra ascende à condição de modo de ver e
interpretar a natureza toda e passando a símbolo e a signo, fixa-se como imagem
não naturalista ou realista, mas imagem literária depurada, com códigos e
significados plurais. Apesar de que, por autodisciplina obediente aos limites
do nosso projeto de ensaio, as obras mais recentes irão pesar no trabalho
relativamente menos e o contributo premonitório da Geração de 70 permanecerá,
por ora, na obscuridade.
É dentro daquela dupla linha interpretativa que encontraremos nos novos
poetas e prosadores, mas também nos outros, um referencial mais de signos do
que de matéria naturalmente configurada, e é nesses signos que vamos procurar o
fio condutor ambiental.[12] Ficam, no entanto, por analisar quais as causas
histórico-culturais e de “tradição literária” desse “admirável anacronismo” e o
seu pleno significado político-cultural, por se situarem mais além da dimensão
de um ensaio.
1.
Neste contexto, perguntamo-nos mesmo se a literatura portuguesa não representa, à sua escala modesta, face ao
panorama da cultura mundial, um contributo de valor global para ultrapassar os
paradigmas Modernista e Pós-Modernista, ao incorporar as suas audácias
técnico-compositivas e conquistas formais, mas retomando os temas clássicos da
arte e da literatura, a condição e a aventura humanas sobre a terra, iluminadas
atualmente pelo espectro da crise ambiental e pela estagnação dogmática de
todas as ideologias (estagnação que parece morte, mas é afinal morte aparente),
a que começaremos a responder neste trabalho.
Veremos, por exemplo, a interpretação do Delfim, de Cardoso Pires,
obra que utiliza técnicas compositivas inovadoras e aborda, num dos seus
círculos interpretativos, algumas temáticas ambientais. Ou o Portuguex,
de Armando da Silva Carvalho, a que noutro capítulo faremos referência, mas que
nos conduz ao âmago da sociedade atual, transformada num gigantesco mercado
onde tudo, mas tudo, se pode comprar e vender e onde a única lei de bronze é a
da mais feroz concorrência e consumo.
Lugar de destaque nesta reflexão deve merecer a obra de Ruben A. A Torre
de Barbela, “…impressionante romagem através do país e do mundo...”onde a
lei dos mortos pouco a pouco superou a lei dos vivos.”[13] São oito séculos de história, de um ambiente
humanizado pelo esforço de fidalgos e camponeses, que, na década de 60, o autor
classificava como…
“...uma
das harmonias mais completas que se memoriava nos anais e incunábulos da
fidalguia nacional...”consubstanciada“...naquele contacto e conjunto entre a
natureza e o não estragar dos homens...Uma paisagem espetacular de sentido ignoto-limoeiros
de São Cyro aveludados de um musgo cor de garrafa antiga, árvores de fruto
comandadas pelas macieiras reinetas bem destacadas de um pelotão de cerejeiras,
pereiras, damasqueiros e laranjeiras _ transmitia uma visão cheirosa e limpa a
quem descesse as escadas da Torre e fosse a pé pela avenida dos plátanos
perscrutar a margem do rio”.[14]
Mas
uma Torre, arquétipo da nação portuguesa e do seu património natural e
cultural, que na época já era ameaçada pelo “africanista”, arqui-símbolo do
ricaço novo-rico e da incultura política que lhe está associada; assim foram,
nas décadas seguintes, os que haviam de construir nos Algarves, nas grandes
cidades e nas paisagens mais vulneráveis, os seus impérios de betão, destruindo
o equilíbrio ecológico da paisagem.
E
que contém uma prodigiosa reflexão sobre a alma nacional, acerca da nossa
cultura e ambiente intelectual da época, onde pululam
“trampolineiros...leva-e-traz que só sabem tecer camisolas de intriga”.[15] Arrivistas que, bem no
fundo do seu atávico atraso, reverente para tudo o que é estrangeiro, destilam
“um ódio medroso que arrepia. ”Ódio que na fábula do romance queima os que pelo
amor e a liberdade quiseram encetar o caminho para uma vida nova.[16] Uma cultura e uma história
onde “os mortos são vivos e os vivos são mortos”, imagens evocadoras da
repressão e do conformismo social, que marcavam o início de um período de
guerra em três frentes coloniais e de exaltado nacionalismo, de destruição do
ambiente de comunhão entre a terra e o homem português, capaz, ainda, de
preservar a ecologia da paisagem e a sua espiritualidade.[17] Leia-se, paisagem
humanizada, monumento ao esforço do homem e sustento da sua metafísica
compreensão do mundo.
Eis, portanto, a primeira referência discursiva
a um dos autores que melhor manifesta as duas faces da consciência
ambientalista que nos propomos analisar neste percurso, pela sua obra e a nossa
literatura. Começámos com a interpretação metalinguística de um intertexto
subjacente à narrativa: ali estão os símbolos ancestrais da terra, a relação de
harmonia do homem com a natureza, mas igualmente os sinais que ameaçam
rompê-la; a consciência premonitória de que a ocupação desordenada da paisagem
representa também a destruição das condições ambientais onde a vida floresce e,
com ela, se põe em risco a dignidade do ser humano.
Veremos
adiante, sem o sentido mediador desta metafórica Torre, o apelo direto do autor
contra a destruição do património construído na alta de Coimbra. Os elementos
físicos que nos permitem reconhecer os objetos desse património ali estão
objetivamente referidos, mas carregados de outras significações e é a memória
poética que o autor evoca, para se insurgir contra o aniquilamento daquilo que
transcende a materialidade das coisas: “o
musgo quente de nomes que por ali viveram e sentiram”[18] Antecipamos assim dois
conceitos chave da nossa metodologia de leitura das obras literárias, numa
perspectiva que parte do aparelho concetual da filosofia ambiental: a “ecologia da paisagem” e a “metafísica
do ambiente”.[19] Deixamos, por agora, o
leitor deste trabalho suspenso da sua própria intuição, com as referências às
obras de Ruben A. como primeiro contributo para o pleno entendimento do
significado daqueles conceitos.
2.
Ao longo deste estudo havia que fazer prova da
contribuição dos poetas e prosadores portugueses para a génese da consciência
ambiental contemporânea. Por razões de método, poderíamos ter escolhido apenas
alguns autores de referência e seguir, na totalidade da sua obra, o fio
condutor da reflexão sobre o ambiente. Deste modo contribuiríamos, seguramente,
para desfazer alguns mal-entendidos e estigmas que rodeiam, por exemplo, a arte
literária de Aquilino Ribeiro, mal compreendido na sua modernidade e
apelidado de ruralista, apodo a que não escapa Miguel Torga, ou para
proporcionar uma outra perspectiva de aproximação aos textos da Nova Literatura
de Almeida Faria e Cardoso Pires, mas correndo, assim, o risco, de que a
dimensão global e a diversidade daquele contributo se tomasse pouco
significativo no panorama geral da nossa produção literária.
Ainda assim, não foi fácil optar pelo método que
escolhemos, de ordem temática: Na Parte II, a experiência estética da natureza,
que evolui das conceções conservacionistas para a categoria de ambiente,
abordada literariamente como terreno de revelação e reflexão poética de todas
as questões que gravitam em tomo dos conceitos de natureza e ambiente; na Parte
III, a relação sistémica entre os seres e as coisas, com as suas correlações
económicas, sociais, culturais e históricas, configurada no que chamamos de “paisagens humanizadas”, marcadas pelo
dilema “crescimento ou desenvolvimento sustentável;” e, finalmente, na Parte
IV, a análise do novo paradigma da natureza, onde se integra o ser humano, que
emana do conceito de ambiente e se traduz na construção de uma nova ética global.
Este percurso temático, ao longo do qual se
revelam os contributos e as obras dos nossos escritores, pareceu-nos mais
adequado para demonstrar a sua amplitude e valor premonitório, a fim de provar
que tal desiderato não é a exceção mas a regra. Vale também, num sentido
inverso ao da demonstração inicial, como constatação da influência que a crise
ambiental, quer disso tenham ou não consciência os escritores, exerce hoje
sobre a arte literária e a cultura. De qualquer modo, os leitores deste ensaio
encontrarão em evidência uma seleção de autores representativos das correntes,
escolas e personalidades literárias mais marcantes do período onde concentrámos
o nosso estudo.[20]
Autor
© António dos Santos Queirós
ISBN 978-972-8659-41-7
[2] “...caminhante, não
há caminho, faz-se caminho ao andar...”Do poema Campos de Castela, 1912. Ver, António
Machado, Antologia Poética, Edição
Bilingue.
[12] Para elucidar melhor esta questão,
recorramos agora à reflexão filosófica do professor Carlos João Correia, acerca
da dialética da função simbólica, que implica “… dois movimentos aparentemente
contraditórios sobre a experiência do sentido, ou seja, … uma estrutura
transcendental do sentido e o poder operativo e transfigurador da
experiência.” E noutro ponto da sua dissertação:”…o mundo da ficção
distancia-se do mundo da experiência
(situação), só que essa distanciação vai permitir uma nova redescrição e
transfiguração da experiência. Ora, só podemos ampliar o horizonte da nossa
perceção elevando-nos a um ponto mais elevado que nos permita circunscrever o
espaço em que estávamos imersos. É esse, a nosso ver, o sentido eminente das
grandes criações literárias da humanidade. Oferecem-nos perspetivas novas nas
quais podemos observar e transformar a experiência.”Carlos João Nunes Correia, Ricoeur e a Expressão
Simbólica do Sentido, resumo da dissertação de doutoramento, Philosofica, nº3, pág.149.
[14] Ruben A., A Torre de Barbela, pág. 345, 1964.
[15] Ibid., pág. 265.
[16] Ibid., pág. 264.
[18] A Ultima Época Civilizada de Coimbra, texto de
1966, da autoria de Ruben A., publicado na coletânea Memórias de Alegria,
organizada por Eugénio de Andrade.
[19] Usamos aqui o
conceito de “metafísica” não como oposição à “física”, matéria e ciência, mas
no sentido do que transcende a “física”, daquilo que é espírito e cultura da
Humanidade.
[20] Em
notas ao texto delineámos as pistas de desenvolvimento e aprofundamento desta
investigação, deixando para um outro e volumoso trabalho, a organização
sequencial das citações completas extraídas das obras em análise, classificadas
em referência aos conceitos imbricadas na categoria do ambiente, de modo a
permitir a ligação do extrato à obra em referência e desta ao conjunto das
questões em análise. Enfim, esta “compilação” é, para retornar à terminologia
de Eco, também um proto ensaio, mas com a diferença de que os textos em causa
não estavam publicados num contexto da relação entre a Literatura e o Ambiente
e foi necessário investigar para descobrir essa peculiar ligação. Umberto
Eco, na obra Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas, escreve:”...pode
haver uma boa tese que não seja de investigação, mas uma tese de compilação.
Numa tese de compilação o estudante demonstra simplesmente ter examinado
criticamente a maior parte da «literatura» existente (ou seja, os trabalhos
publicados sobre o assunto) e ter sido capaz de expô-la de modo claro...,”pág.
25. O que vale igualmente para uma obra de ensaio.
Biblioteca da LAC
©ANTÓNIO DOS SANTOS QUEIRÓS
Centro de Filosofia. Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade 1600-214, Lisboa Portugal
adsqueiros@gmail.com
T. 910506370
Professor. Researcher
of Environmental Philosophy and Ethics in the Center of Philosophy of U.
Lisbon, visiting the U. Salamanca and Sorbonne.
Member of Wah Ching
Centre of Research on Education in China the University of Hong Kong.
It is also research of
Cultural Tourism, Tourism of Nature and Sustainable Development in the U. of
Aveiro.
His research interests
include global bioethics, literature, higher education, international heritage
and environmental projects.
Doctor of Philosophy
(Ph.D.).
Master of Philosophy
(Ph.M,.
Master of Arts.
(A.M.).
Post-doctoral
Research, Field of Study: Economy and Tourism.
China, philosophy, history, economy and culture.
He published 13 books
and directed 11 scientific films, 28 chapters’ books, 62 papers in international
peer review journals and papers in conference proceedings and others multimedia
products. Two dozen articles in newspapers and magazines.
Like editor he
published more than 50 scientific tittles.
Association of Museum
and Science Centers of Portugal_ MC2P (ONG) President
Secretary General of
CCDPCh_ Chamber of Portugal-China Cooperation and Development 葡萄牙-中国合作发展 协会
Adviser and Researcher of Fórum dos Serviços para uma Especialização
Inteligente da Economia Portuguesa, Confederação do Comércio e Serviços de
Portugal (CCP_ National Confederation of Services and Trader),
Professor. Investigador em filosofia ambiental e
ética ambiental no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da U. Lisboa,
visitando a U. de Salamanca e a U. da Sorbonne.
Membro do Centro de Investigação em Ciências da
Educação Wah Ching Centre of Research on Education in China the University of
Hong Kong.
Investigador nas áreas de Turismo Ambiental e
desenvolvimento sustentável (U de Aveiro), visitando as Universidades de Salamanca
e Bordéus.
Os seus interesses de investigação incluem ainda a
bioética global, os estudos literários, o ensino superior, o património, os
projetos ambientais.
Doutor em Filosofia das Ciências. Mestre em
Filosofia da Natureza e do Ambiente. Mestre em Teoria da Arte. Pós-graduado em
Ciências da Educação.
Investigação de pós-doutoramento, Economia e
turismo. China, filosofia, história, economia e cultura.
Publicou 13 livros e dirigiu 11 filmes científicos,
28 capítulos de livros, 62 artigos em jornais e revistas científicas. Duas
dúzias de artigos em jornais e revistas. Como editor, publicou mais de 50
títulos científicos.
Presidente da Associação de Museus e Centros de
Ciência de Portugal. MC2P.
Secretário-geral da Câmara de Cooperação e
Desenvolvimento Portugal-China. CCPDCh.
Consultor do Fórum dos Serviços.
Confederação do Comércio e Serviços de Portugal. CCP.
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