Por homem, neste contexto,
entenda-se um ser humano, masculino ou feminino. Neste sentido tanto serve para
o 3º Conde de Castelo Melhor, reorganizador das tropas portuguesas para
expulsar os espanhóis após 1640, como para a rainha Filipa de Lencastre, inspiradora
(no mínimo) da expansão marítima portuguesa. Parece que sim, que os “grandes
homens” morreram sem descendência. Pelo menos não os encontramos nesta crise,
nem na anterior, a de 2008, a do sistema financeiro, nem na guerra da Sérvia,
nem na Invasão do Iraque, nem no ataque ao Afeganistão, nem na implosão da
União Soviética… nem… nem…
No entanto deviam ter surgido, se
fosse cumprida a definição de loucura erradamente atribuída a Einstein e a
Benjamim Franklin: “ loucura é fazer a mesma coisa uma vez e outra e esperar
obter resultados diferentes”. Podíamos dizer que circunstâncias idênticas
produzem resultados idênticos e concluir que as grandes crises produzem grandes
homens. Ora, não produziram.
A explicação da História a partir
da ação e do impacto dos indivíduos determinantes por carisma, génio ou impacto
político foi muito popular na Europa no final do século XIX e no início do XX.
Em Portugal manteve-se dominante durante o Estado Novo, com uma historiografia
assente na epopeia e na figura do “herói”, de Viriato a Salazar, passando por
Vasco da Gama. Thomas Carlyle, um historiador, ensaísta e professor escocês
durante a era vitoriana considerou que “A história do mundo é apenas a
biografia de grandes homens”, mas teve a presciência de definir a economia como
uma “ciência sombria”.
Então porque não produziram
“grandes homens” as crises das últimas décadas, desde o desaparecimento dos que
dividiram o mundo em Ialta, no pós-Segunda Guerra (Roosevelt, Estaline e
Churchill) e dos que se reuniram em Bandung, na Indonésia, em 1955 para
lançarem o conceito de Terceiro Mundo e o Movimento Descolonizador (Nheru,
Sukarno, Nasser) e do emergir da China como ator mundial com Mao Tse Tung?
Porque desapareceram os “grandes homens” da paisagem da história?
A má qualidade das classes
dirigentes, má semente de onde não brotam “grandes homens”, tem servido para
justificar quer o atraso quer a decadência de Portugal após a já longínqua
loucura de Alcácer Quibir, quer a atual insignificância da União Europeia nos
jogos de poder mundial, mas se continuamos a acreditar no padrão histórico de
que as grandes ocasiões produzem grandes homens, porque não os têm gerado estas
últimas crises?
Aqui em Portugal o terramoto de
1755 teve o condão de fazer grande (o que é distinto de engrandecer) um vulgar
cortesão, o que viria a ser o Marquês de Pombal — enterremos os mortos e
tratemos dos vivos. Foi um grande homem apesar das monstruosidades cometidas e
não só contra os Távoras. Mais perto no tempo, a Segunda Guerra transformou um
truculento e pouco considerado Primeiro Lord do Almirantado, criticado por
belicista e imprudente, no Winston Churchill, primeiro-ministro e figura
decisiva nos destinos da humanidade ameaçada nos seus fundamentos pelas
potências do Eixo, isto apesar da linguagem desbragada, do comportamento
pessoal pouco formal, do alcoolismo e do tabaco. E do humor cáustico, hoje
inadmissível num político.
Estamos “habituados” a ver
surgirem grandes homens nos momentos de crise, que apesar das suas imperfeições
são uma força positiva, promotores do bem, da melhoria da justiça, do
bem-estar, que vencem perigos. E necessitamos deles, apesar das críticas à
visão da História centrada nas personalidades, porque exclui da definição do
destino coletivo grupos inteiros, os “movimentos de massas”, tão bem
representados na impressionante e bela fotografia do thrilller do filme
Novecento, de Bernardo Bertolucci, com os camponeses a avançarem em direção a
nós, à câmara, que representa o futuro.
A imagem é muito romântica, mas
não corresponde à realidade histórica. Atrás daqueles camponeses em revolta
existiam dirigentes, ativistas, pensadores. Existia um trabalho de organização,
de mobilização. Como, aliás, existiu na retaguarda das “massas” de sans
culottes que assaltaram a Bastilha, ou na dos proletários que entraram no
Palácio de Inverno. Ou até na condução dos camponeses que em Portugal, em 1975,
ocuparam os latifúndios alentejanos. Não existem revoluções selvagens.
É falaciosa a tese de as decisões
nas grandes voltas da História da humanidade terem resultado de “movimentos de
massas”, espontaneamente desencadeados por uma quebra da coesão social
provocada por insuportáveis tensões. Os movimentos de massas são tão
espontâneos como a explosão de uma granada. Antes da explosão o artefacto teve
de ser preparado e de seguida lançado sobre um objetivo previamente escolhido e
os resultados foram apropriados por alguém. Não há tsunamis sociais. Mesmo os
tsunamis naturais resultam de um processo de acumulação de energia que obedece
às leis da física.
O que vai seguir-se em termos
políticos, sociais e económicos a esta crise causada pela epidemia do
coronavírus será conduzido por alguém que não sabemos quem é — e devíamos
saber. Uma das vantagens dos “grandes homens” nos grandes momentos é terem
rosto, serem identificáveis. Eles não surgem porque há quem deliberadamente os
impeça de se desenvolverem. Esta é a questão!
É estranho que não perguntemos a
razão de ter secado o meio e de terem sido esterilizadas as condições que
tornavam indispensáveis os “chefes”. A mais conhecida revolta de escravos, em
Roma, teve uma chefia representada por Spartacus. As revoltas camponesas na
Idade Média, as revoltas de cariz ideológico-religioso, as lutas contra as
heresias, a revolução francesa, a revolução russa, as revoltas dos escravos
brasileiros que originaram os quilombos tiveram sempre em fundo uma ideologia
resultante de um processo de análise de uma situação, uma hierarquia e um grupo
dirigente. O golpe militar do 25 de abril de 1974, um caso que nos diz diretamente
respeito e que ocorreu com uma geração ainda em parte sobrevivente, não foi um
ato espontâneo, mas sim fruto da organização de um grupo restrito, com chefias
e hierarquias criadas para responder a uma circunstância de impasse militar e
político. O processo revolucionário, o dito PREC, resultou da ação de
personagens que organizaram e chefiaram vários grupos. Os movimentos de massas
foram, como é historicamente recorrente, peões de um jogo dirigido por reis,
rainhas, bispos. A manifestação da Fonte Luminosa, as mocas de Rio Maior, ou os
assaltos às sedes dos partidos de esquerda no Norte, foram movimentos tão
“espontâneos” como a criação dos SUV (Soldados Unidos Vencerão), os desfiles de
camponeses alentejanos e de operários da Lisnave em Lisboa! A realidade é que a
humanidade, como uma espécie gregária, só sobrevive em cooperação dos seus
elementos e com uma direção.
Estamos habituados a definir os
“grandes homens” como aqueles que dirigem os seus povos na “boa direção”, que
lhes criam as melhores condições de sobrevivência. Mas há o reverso, os
“grandes homens negros”, os que conduzem as massas para o abismo. E são esses
“invisíveis grandes homens negros” que nos têm marcado o destino e nos
conduziram ao vazio e à “terra arrasada” a que se referiu Bolsonaro, um dos
mais recentes e toscos exemplares dessa nova espécie de dirigentes de saque,
como os definiu Voltaire: “Daqueles que comandaram batalhões e esquadrões só
resta o nome. O género humano nada tem para mostrar de uma centena de batalhas
travadas. Mas os grandes homens de que falo prepararam puros e perenes prazeres
para os homens que ainda vão nascer. Uma eclusa ligando dois mares, um quadro
de Poussin, uma bela tragédia, uma nova verdade — são coisas mil vezes mais
preciosas do que todos os anais da corte ou todos os relatos de campanhas
militares. Sabem que, comigo, os grandes homens são os primeiros e os heróis os
últimos. Chamo «grandes homens» a todos aqueles que se distinguiram na criação
daquilo que é útil ou agradável. Os saqueadores de províncias são meros
heróis.”
Repugna-me a ideia de estarmos à
mercê de saqueadores de províncias. Apesar do risco, entendo que faltam os
“grandes homens”, os que transmitem grandes esperanças, como os definiu Thomas
Fuller, um religioso e historiador inglês do século dezassete. “As grandes
esperanças fazem os grandes homens.“ A afirmação pode ser colocada de forma
inversa: os grandes homens são os que motivam grandes esperanças. Aqueles cujo
caráter é sempre grande, sempre igual em todos os momentos.
Stephen King, um escritor
norte-americano de best-sellers, por isso pouco conceituado entre os
intelectuais, mas que é um “rapaz” da minha idade, com alguns vícios de vida,
incluindo o álcool, e de quem gosto, não por isso, mas pela liberdade de
pensar, distinguiu a grandeza das obras da grandeza do ser: “Quase sempre
admiramos os homens por aquilo que criaram; e criar é usar uma capacidade que
recebemos gratuitamente e desenvolvemos por nosso esforço. Mas nem todo o valor
de uma pessoa se encontra naquilo que ela cria: o ser humano é sempre superior
ao fruto do seu trabalho.”
Não é certo que o ser humano seja
sempre superior ao fruto do seu trabalho, mas é quase certo que seja diferente.
Parece no entanto aceitável admitir que a grandeza do homem não depende da
criação de nenhuma obra visível e muitos são grandes simplesmente pelo que são,
e não pelo que fazem. Precisamos de quem seja. De quem nos motive a esperança
aqui em Portugal, na Europa, no Mundo. Mas para eles surgirem necessitam de
condições de nascimento e desenvolvimento e é a sociedade, somos nós, os que
vivemos no mesmo grupo que temos o dever de proporcionar o ambiente que promova
hierarquias resultantes de uma seleção dos melhores e dos mais capazes, como
fazem os enxames com a abelha-mestra, por exemplo.
Embora a cultura nos distinga dos
outros animais, porque promove transformações na forma como os humanos se
relacionam entre si e o meio ambiente, na essência somos animais sociais.
Esopo, o escravo que no século sexto antes de Cristo inventou as fábulas,
atribuiu aos animais as características dos homens adequados a encontrar o
caminho da sobrevivência em momentos de crise. O leão representa a força; a
raposa, a astúcia; a formiga, o trabalho.
Através de Esopo obtivemos uma
primeira aproximação ao que no Ocidente pode ser entendido como um grande
homem. Será aquele que conjuga adequadamente força, astúcia e trabalho para se
impor no seu grupo. As fábulas de Esopo, curiosa e sabiamente, não promovem
salvadores, mas referem muitas vezes um monstro que tudo devora e que é
necessário vencer. La Fontaine, um dos maiores divulgadores dos textos de
Esopo, considerava que ele criou as fábulas com o objetivo de transmitir a
verdadeira sabedoria, assente na capacidade de os humanos se organizarem e de
utilizarem os melhores de entre o seu grupo, o bando inicial, para se adaptarem
às circunstâncias e sobreviverem.
O discurso de “os políticos são
todos farinha do mesmo saco” assenta na convicção que os populistas e os
“corruptos de banda larga e grande profundidade”, os donos de tudo, de facto,
foram inculcando nas “massas” de que os dirigentes são extraterrestres. Este
tipo de discurso demagógico que os órgãos de comunicação de massas se
encarregam de impor é tudo menos inocente e bem-intencionado. É uma estratégia
política friamente elaborada. É uma caça seletiva que impede, sob a aparência
de luta contra a corrupção, a favor da transparência, da busca dos escândalos
nos interstícios mais recônditos da vida, que ascendam ao poder aqueles que
podem ser incómodos à minoria dos detentores dos poderes de facto, os que na
sombra desencadeiam guerras para garantirem lucros e domínio. A informação
tablóide, sob a aparência de neutralidade e de atacar todos por igual, é uma
arma nessa estratégia de arrasar e matar seletivamente e à nascença aqueles que
podem causar prejuízos à ordem estabelecida.
A estratégia do populismo assenta
na máscara. Apresenta-se como um impoluto movimento de incorruptíveis, como uma
Inquisição, ou uma igreja evangelista, como uma santa religião cujos pregadores,
televangelistas, jornalistas de sextas à noite e de tudo a nu, exorcistas que
acusam quem convém ser anulado e exigem de braços elevados aos céus e vozes
esganiçadas medidas de sanidade, de bons costumes, práticas de honestidade e
pureza, exigência de qualidades angelicais, de castidade e até de santidade aos
candidatos a dirigentes políticos, mas por detrás dessa máscara, o populismo é
uma ideologia e uma estratégia de tomada e manutenção do poder — que secou
deliberadamente a terra de onde podiam surgir os tais “ditos grandes homens”
que, por definição, agem fora dos cânones.
O populismo dominante, neoliberal
e global, tem imposto com sucesso uma interpretação metafísica que já os
sumérios faziam sobre os responsáveis pelas calamidades e que teve em Portugal
duas expressões, uma no sebastianismo e outra no marianismo, de que o
“milagarismo” de Fátima é a marca mais visível. Agora substituídas pelas
campanhas de desinformação e de manipulação nos órgãos de comunicação social,
através de santos e santas de olhos arregalados, equipados e equipadas com
câmaras e telemóveis, como as antigas mulheres de virtude se equipavam de bolas
de cristal e tijelas para fumigações.
O populismo levou aqui em
Portugal à demissão de um ministro (João Soares) por ter oferecido um par de
bofetadas a um cronista maldizente, mas esse é apenas um aspeto caricato que
esconde a “essência do mal”: o populismo que nos centros de poder mundial
mantém presos Julien Assange, ou Snowden por serem detentores de segredos que
são uma arma de chantagem a utilizar contra quem ameaçar a “ordem” estabelecida
e de promoção de factótuns insípidos e conduzidos pela trela
Os “grandes homens” existem. A
diferença do nosso tempo para os anteriores é que os “poderes” se tornaram
invisíveis, logo muito mais perigosos. Ameaçam a nossa sobrevivência. Os
grandes homens, os autores e atores das transformações, não surgem porque foram
esmagados pelas bases de dados de informações das grandes corporações, que
mantêm uma lâmina de guilhotina sobre o pescoço dos que poderiam desempenhar
esse papel com um escândalo sempre à mão para ser transmitido às cadeias de
manipulação.
Sobrevivência! É disso que se
trata quer nos tempos de normalidade quer nos de turbulenta incerteza. A
questão que esta epidemia nos coloca é a da sobrevivência e daí a necessidade
de “grandes homens” visíveis, expostos, com virtudes e defeitos, com
escândalos, mas que acendam uma luz que permita descobrir um caminho e vencer
os monstros que nos aprisionam na Caverna, aquela que na alegoria de Platão
pretende incentivar o ser humano a libertar-se. O politicamente correto
promovido pelos politicamente determinados é uma ameaça à nossa sobrevivência.
O papa Francisco, e eu não sou religioso, expôs esse perigo ao afirmar ser
preferível um pecador que não acredita em Deus a um hipócrita cristão.
O politicamente correto é um
movimento de hipocrisia para esconder a grande corrupção, a que permite dominar
povos e continentes, desencadear proveitosas guerras e desgraças associadas à
destruição e à reconstrução. A propósito, os populistas e os seus meios de
comunicação expõem à turba os criminosos depositantes em offshores, uma ação
meritória, mas nunca atacam quem cria as condições para operar e instalar
offshores, o maior dos quais é a City de Londres, seguido de Wall Street…
Escondem sempre a mão que atira a pedra!
Correndo o risco de levantar um
clamor de conhecidas rejeições — do perigo alemão à ausência de carisma — a
única figura que a Europa tem neste tempo para apresentar como “grande homem” é
uma mulher insípida e aparentemente triste, Angela Merkel, que foi o melhor que
se pode conseguir e a quem, apesar da sua insossa normalidade ainda assim os
tais monstros da caverna chantageiam e procuram limitar o raio de ação,
mandando publicar de tempos a tempos umas imagens ditas de juventude, com ela
ou alguém parecido nua a passear num campismo.
Mas, além de Angela Merkel, o
resto dos dirigentes europeus com que um cidadão de regular comportamento pode
conversar e beber um copo são patrulhas, como afirmava o meu amigo Armando
Baptista Bastos na sua época de militância no Partido Comunista, a uma mesa de
tertúlia, referindo-se às pequenas formações de esquerda radical de que eu e o
tão mal reconhecido Nuno de Bragança éramos próximos. O máximo que o populismo
deixa surgir na direção da Europa são funcionários mais ou menos simpáticos,
mas que não ponham em causa a “ordem”, que sejam obedientes e respeitem a
cartilha.
***
O tema dos “grandes homens”
continuará a entreter-me e a estar à disposição dos meus amigos num próximo
texto.
Interrogo-me porque considero
Boris Johnson o grande homem do momento na Europa, em versão negra, do tipo do
Nero, ou de Coriolano que irá pegar fogo a esta herança romana que é a União
Europeia… isto apesar de saber que está infetado pelo coronavirus… e lhe
desejar as melhoras, como a todos os doentes.
Publicado em 27 de março, em Medium
Carlos de Matos Gomes ou Carlos Vale
Ferraz
Livros
Nó cego 1982
Os lobos não usam coleira 1990
Guerra colonial 2000
Flamingos dourado 2004
Guerra colonial: um repórter em
Angola 2001
Fala-me de África 2007
Alcora: o acordo secreto do
colonialismo : Portugal, África do Sul e Rodésia na última fase da guerra
colonial 2013
A conquista das almas: cartazes e
panfletos da acção psicológica na guerra colonial 2016
Basta-me Viver 2010
A conquista das almas: cartazes e
panfletos da acção psicológica na guerra colonial 2013
A Mulher do Legionário 2013
A Estrada dos Silêncios 2015
A última viúva de África 2017
Que fazer contigo, pá? (o
regresso do herói de uma viagem sem epopeia)
2019
Sem comentários:
Enviar um comentário