Viriato Soromenho-Marques
Professor catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa*
O
debate sobre as alterações climáticas está politicamente contaminado num
sentido diverso daquele que é muitas vezes apregoado nos meios de comunicação
social e nas redes informais. Não se trata apenas das conhecidas campanhas de
desinformação e “fake news” financiadas por sectores económicos ligados à
exploração de carvão, petróleo e outros combustíveis fósseis, tentando denegrir
os resultados da pesquisa científica, e a honorabilidade dos próprios
cientistas. O problema é mais fundo, residindo no próprio desenho da principal
organização responsável pela produção de relatórios globais; o Painel
Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que reúne no âmbito da
Organização Meteorológica Mundial, o mesmo é dizer, das Nações Unidas.
Os
relatórios do IPCC integram dois defeitos estruturais, que têm afectado os
resultados e deformado a perspectiva com que olhamos para o que está em causa.
O primeiro consiste no carácter compósito do próprio IPCC, que agrega uma
variedade significativa de actores políticos, económicos e institucionais. Isso
significa que os dados da investigação científica propriamente dita nunca são
publicados em bruto, mas sim depois de um longo e refinado processamento da
informação, efectuado na lógica típica da ONU, de consensualização sucessiva e
arduamente debatida dos textos a aprovar. O segundo defeito estrutural encontra-se
no próprio horizonte temporal muito curto. É claro que para a maioria dos
regedores políticos e patrões da indústria e da finança, o ano de referência
2100 situa-se quase no infinito. Mas, no plano material e científico, 2100 é já
amanhã. Se não ocorrer nenhuma catástrofe, muitos dos nossos filhos e
seguramente os nossos netos ainda poderão estar vivos nessa data.
A
combinação dessas duas limitações de formatação ficou bem patente com a recente
publicação de um artigo na revista Nature
Geoscience. Com efeito, os dois defeitos do IPCC tendem a amaciar os
resultados dos relatórios da ONU sobre clima, e criam uma espécie de corte
histórico, como se o que se passasse depois de 2100 não fosse relevante. O
artigo em causa, resultante da investigação de cientistas de 17 países,
limita-se a deixar o conhecimento científico trabalhar sem limitações
artificiais. Não é o primeiro trabalho desta natureza. Ainda há uns anos, James
Hansen e colegas publicaram um estudo que seguia as mesmas pisadas, a saber,
analisar os paleoclimas (climas do passado) onde se registava uma temperatura
média tão ou mais elevada do que a actual. Nos últimos 3,3 milhões de anos
esses períodos foram três: o Óptimo do Holoceno Médio (entre 9000 e 5000 anos
antes do tempo presente); o último período interglacial (entre129 000 e
116 000 anos atrás); e o Óptimo do Plioceno Médio (entre 3,3 e 3 milhões
de anos atrás. O que sabemos desses períodos é recolhido através de inúmeras
vias de pesquisa que, cruzadas, permitem diminuir a margem de erro. Como neste
estudo, liderado por Hubertus Fischer da Universidade de Berna, a história
continua mesmo depois de 2100. Combinando o método analógico com o princípio da
causalidade, o que poderemos esperar em matéria de alterações climáticas, mesmo
se a temperatura média não aumentar mais do que 1,5ºC-2ºC (o que é quase
totalmente improvável), é uma radical mudança das condições de habitabilidade
da Terra para os próximos séculos e milénios. Mesmo que o degelo da criosfera
possa ser limitado, isto é, não entre numa situação de não retorno e tipping-point, o nível médio do mar
(NMM) poderá estabilizar, dentro de séculos, seis metros acima do nível actual…
A
conclusão desta história sem moral é a de que no grande festim de fogo e fúria
dos últimos 150 anos revelou-se sem máscaras o pior da nossa humanidade. Pela
desmesura e pela arrogância, pela ambição e pela vileza, causámos danos
permanentes no delicado software do
Sistema Terra, que é um conceito cuja realidade é desconhecida pela maioria da
nossa espécie, incluindo os machos-alfa da “elite” que manda no mundo. O século
e meio de loucura a que chamámos Revolução Industrial, foi um banquete para
poucos, que vai ser pago por todos ao longo de séculos onde a protecção civil e
a defesa contra calamidades serão as principais políticas públicas. As dívidas
ontológicas são pagas até ao fim. Sem reestruturação, moratórias, ou baixa de
juros. Quem poderá duvidar que nós, os habitantes dos séculos XX e XXI, seremos
recordados com hostilidade e laivos de ódio pelos nossos vindouros? E quem
poderá censurá-los por isso?
Viriato
Soromenho-Marques, “O que vão dizer de nós no Futuro”, Jornal de Letras, 18 de
Julho de 2018, p. 29.
*Integrou o Conselho Económico e Social, a Comissão Nacional da UNESCO, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, a delegação portuguesa à Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo... Assumiu a coordenação científica do Programa (internacional) Gulbenkian Ambiente e foi Vice-Presidente da rede europeia de conselhos de ambiente (EEAC- European Environmental Advisory Councils) 2010 Integrou, por convite do Presidente da Comissão Europeia, o High Level Group on Energy and Climate Change...
http://viriatosoromenho-marques.com/portal/
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