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UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

domingo, 30 de setembro de 2018

O QUE VÃO DIZER DE NÓS NO FUTURO


 Viriato Soromenho-Marques
Professor catedrático de Filosofia  na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa*



O debate sobre as alterações climáticas está politicamente contaminado num sentido diverso daquele que é muitas vezes apregoado nos meios de comunicação social e nas redes informais. Não se trata apenas das conhecidas campanhas de desinformação e “fake news” financiadas por sectores económicos ligados à exploração de carvão, petróleo e outros combustíveis fósseis, tentando denegrir os resultados da pesquisa científica, e a honorabilidade dos próprios cientistas. O problema é mais fundo, residindo no próprio desenho da principal organização responsável pela produção de relatórios globais; o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que reúne no âmbito da Organização Meteorológica Mundial, o mesmo é dizer, das Nações Unidas. 

Os relatórios do IPCC integram dois defeitos estruturais, que têm afectado os resultados e deformado a perspectiva com que olhamos para o que está em causa. O primeiro consiste no carácter compósito do próprio IPCC, que agrega uma variedade significativa de actores políticos, económicos e institucionais. Isso significa que os dados da investigação científica propriamente dita nunca são publicados em bruto, mas sim depois de um longo e refinado processamento da informação, efectuado na lógica típica da ONU, de consensualização sucessiva e arduamente debatida dos textos a aprovar. O segundo defeito estrutural encontra-se no próprio horizonte temporal muito curto. É claro que para a maioria dos regedores políticos e patrões da indústria e da finança, o ano de referência 2100 situa-se quase no infinito. Mas, no plano material e científico, 2100 é já amanhã. Se não ocorrer nenhuma catástrofe, muitos dos nossos filhos e seguramente os nossos netos ainda poderão estar vivos nessa data.
A combinação dessas duas limitações de formatação ficou bem patente com a recente publicação de um artigo na revista Nature Geoscience. Com efeito, os dois defeitos do IPCC tendem a amaciar os resultados dos relatórios da ONU sobre clima, e criam uma espécie de corte histórico, como se o que se passasse depois de 2100 não fosse relevante. O artigo em causa, resultante da investigação de cientistas de 17 países, limita-se a deixar o conhecimento científico trabalhar sem limitações artificiais. Não é o primeiro trabalho desta natureza. Ainda há uns anos, James Hansen e colegas publicaram um estudo que seguia as mesmas pisadas, a saber, analisar os paleoclimas (climas do passado) onde se registava uma temperatura média tão ou mais elevada do que a actual. Nos últimos 3,3 milhões de anos esses períodos foram três: o Óptimo do Holoceno Médio (entre 9000 e 5000 anos antes do tempo presente); o último período interglacial (entre129 000 e 116 000 anos atrás); e o Óptimo do Plioceno Médio (entre 3,3 e 3 milhões de anos atrás. O que sabemos desses períodos é recolhido através de inúmeras vias de pesquisa que, cruzadas, permitem diminuir a margem de erro. Como neste estudo, liderado por Hubertus Fischer da Universidade de Berna, a história continua mesmo depois de 2100. Combinando o método analógico com o princípio da causalidade, o que poderemos esperar em matéria de alterações climáticas, mesmo se a temperatura média não aumentar mais do que 1,5ºC-2ºC (o que é quase totalmente improvável), é uma radical mudança das condições de habitabilidade da Terra para os próximos séculos e milénios. Mesmo que o degelo da criosfera possa ser limitado, isto é, não entre numa situação de não retorno e tipping-point, o nível médio do mar (NMM) poderá estabilizar, dentro de séculos, seis metros acima do nível actual…
A conclusão desta história sem moral é a de que no grande festim de fogo e fúria dos últimos 150 anos revelou-se sem máscaras o pior da nossa humanidade. Pela desmesura e pela arrogância, pela ambição e pela vileza, causámos danos permanentes no delicado software do Sistema Terra, que é um conceito cuja realidade é desconhecida pela maioria da nossa espécie, incluindo os machos-alfa da “elite” que manda no mundo. O século e meio de loucura a que chamámos Revolução Industrial, foi um banquete para poucos, que vai ser pago por todos ao longo de séculos onde a protecção civil e a defesa contra calamidades serão as principais políticas públicas. As dívidas ontológicas são pagas até ao fim. Sem reestruturação, moratórias, ou baixa de juros. Quem poderá duvidar que nós, os habitantes dos séculos XX e XXI, seremos recordados com hostilidade e laivos de ódio pelos nossos vindouros? E quem poderá censurá-los por isso?

Viriato Soromenho-Marques, “O que vão dizer de nós no Futuro”, Jornal de Letras, 18 de Julho de 2018, p. 29.

*Integrou o Conselho Económico e Social,  a Comissão Nacional da UNESCO, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, a delegação portuguesa à Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo... Assumiu a coordenação científica do Programa (internacional)  Gulbenkian Ambiente  e foi  Vice-Presidente da rede europeia de conselhos de ambiente (EEAC- European Environmental Advisory Councils) 2010 Integrou, por convite do Presidente da Comissão Europeia, o High Level Group on Energy and Climate Change...


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