Vítor Serrão
Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, onde dirige o Instituto de História da Arte e a revista Artis e a
Rede Temática de Estudos em Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões
(RTEACJMSS).
Este nosso tempo tornou-se campo triunfal de ultraliberalismos apátridas e voragens etnocidárias. Fim das grandes narrativas, fim das utopias redentoras, fim da cultura e da arte, fim de um mundo tal como o concebemos. Terá mesmo de ser assim ?
Também no nosso país se sente o
efeito desse regime de finitudes acéfalas e de escatologias sem redenção
possível, um nihilismo absoluto que cheira a cobiça e preconceito e subverte a
cultura genuína dos povos. E, contudo, a agenda dos grandes valores está viva:
a defesa das identidades e do património de partilha, a saúde do meio ambiente,
os direitos sociais e laborais, a consciência de que só com fraternidade e
partilha de recursos (e saberes) o nosso mundo faz sentido. Isto é, um mundo
com a cultura como traço sentido e vivenciado.
A crónica de António Guerreiro
saída hoje no Ípsilon (Público, 13-VII) chama-se «O catastrofismo quotidiano» e
recorda justamente, na linha do antropólogo Ernesto De Martino, o conceito de
'apocalipse cultural', que se torna hoje tão preciso na explicação dos cancros
da terra. Segundo aquele pensador italiano (autor de 'La fine del mondo',
Einaudi, 1977), o conceito que propõs torna-se um instrumento relevante para a
análise cultural e a história das ideias: ele «chama apocalipses culturais aos
momentos em que se dá uma forte sensação de perda, uma sensação que não é só
física, orgânica, mas também psiquica».
Ora aquilo que designamos por
História continua o seu trilho, e o nosso tempo -- um traumatizado tempo sem valores
perenizáveis -- encontra neste conceito um útil pretexto de revisitação
colectiva. «Eppure si muove»: olhar com coração as coisas em volta e prescutar
os seus saberes. Esta, sim, é a única agenda verdadeiramente progressista.
De novo é dada a voz à Política
com causas: é preciso seguir as dinâmicas culturais, e contrariar todo e
qualquer catastrofismo instalado.
Vale
das Buracas de Casmilo, Condeixa: ainda há muitos micro-paraísos que a
desmemória galopante tende a subverter, mas até por isso se impõe travar os
cancros catastrofísticos que nascem da Deusa Ignorância.
Sem comentários:
Enviar um comentário