Por Vasco Costa
Ex Diretor Geral da
DGEMN
“Melhor é duvidar do que
atrevidamente, sem descrição, determinar” (EL-Rei D. Duarte, Leal
Conselheiro, cap.37)
Acessibilidade. Conceitos
A acessibilidade ao património
está diretamente ligada à evolução e modelo da nossa sociedade que, apenas a
partir dos últimos anos do séc. XIX, vem colocar o património na sua lista de
prioridades. Diferenciado, no tempo, foi o modo como cada país reconheceu a
importância do património e o integrou nas políticas sociais, económicas e
culturais.
Hoje, no caminho para uma
sociedade de inclusão, marcamos como objectivo a noção de património para
todos. Está em causa o acesso dos cidadãos que, transitória ou definitivamente,
sejam portadores de algum grau de diminuição das suas capacidades mentais,
sensoriais, visuais, auditivas e locomotoras.
Contudo, para que o património
seja verdadeiramente acessível, temos que o entender de uma forma global, desde
os seus aspetos socioculturais e económicos aos processos construtivos e
funcionais. Para este entendimento é indispensável equacionar e encontrar
soluções para algumas questões do nosso modelo social.
Em primeiro lugar o facto de a
formação obtida em ambiente escolar tender a moldar as mentalidades para uma
excessiva valorização do útil e do utilizável.
É certo que o reconhecimento e
deificação do sucesso pela sociedade, medido em termos económicos, contribuindo
para a desvalorização dos valores da história, filosofia, literatura,
urbanismo, arquitetura, arte e cidadania, enquadram e, indiretamente, orientam
a ação das escolas e a atitude dos cidadãos.
Em segundo lugar as assimetrias
socioeconómicas existentes, com número significativo de famílias vivendo abaixo
ou no limiar da pobreza.
As consequências da primeira
questão acabam por reforçar este padrão, por não permitirem uma clara perceção
do valor do património como recurso para o crescimento económico e
desenvolvimento sustentado.
Em terceiro lugar a questão do acesso à
informação.
Este acesso, ou é negado pela sobreposição das
consequências das duas primeiras questões, ou é dificultado pela escassez, quer
de registos organizados (bases de dados), quer de estudos e projetos de
interpretação e de Ações de valorização dos conteúdos daqueles registos.
Constituindo o património o traço
essencial da Humanidade e da Civilização a que pertencemos, pela expressão de
valores da história, filosofia, literatura, arquitetura, arte e cidadania, e
pelo reflexo da evolução social, política, económica, cultural e ética,
equacionar e resolver as três questões enunciadas é abrir o caminho para um
património acessível.
De outro modo, ficaremos
limitados a deslizar, sem rumo, pela sua superfície.
Acessibilidade ao bem. Intervenções
Sendo o património um bem único e
perecível, deverá ter a sua diversidade valorizada através de estudos e
projetos próprios, no desenho das soluções para eliminação das barreiras
relativas às restrições que afetem o cidadão. Devem ser evitadas intervenções
padronizadas
Essas intervenções devem, ainda,
garantir que não colocam em risco os valores arqueológicos, históricos,
arquitetónicos e ambientais que caracterizam o bem patrimonial objeto de
intervenção.
Significativos obstáculos para
que o património seja acessível, após as intervenções para a sua adaptação, são
materializados quer pela falta de informação, ou por existência de informação
em suporte inadequado, quer pelo desconhecimento das necessidades específicas
de cada tipo de incapacidade, traduzido em falhas de projecto ao nível da
circulação, sinalização e iluminação.
Perante a diversidade patrimonial
- sítios arqueológicos, monumentos (imóveis e estruturas), jardins (públicos e
privados com acesso), parques naturais e reservas da natureza, áreas com
trabalhos de conservação arquitetónica - e as exigências específicas dos
cidadãos com algum tipo de restrição, o estabelecimento de um regulamento
formal com critérios de intervenção e de definição de prioridades, seria
valioso contributo para um património acessível.
Admitimos que um determinado bem
patrimonial seja acessível apenas em parte da sua extensão e que uma
intervenção de adaptação possa não ser realizada por questões técnicas de
conservação ou por considerações de ordem económica.
Acessibilidade e turismo
As mais recentes tendências do
turismo cultural traduzem uma crescente apreciação pelos valores da cultura dos
povos destino. Este fenómeno, que sublinha um maior grau de conhecimento e de
exigência de envolvimento destes turistas, foi consagrado ao mais alto nível
internacional como uma nova orientação cultural, traduzida na expressão “less
museums, more squares”.
Esta extensão do conceito de
património, que vem valorizar a integração do património de cariz histórico ou
monumental no território da cidade, obriga-nos a aprofundar estudos que
conduzam a uma melhor intervenção no território urbano de modo a podermos
compatibilizar as três dimensões territoriais definidas por Taylor[1]-
conhecimento ou experiência territorial, emoções ou afetos e comportamentos ou
tendências - com a crescente funcionalização patrimonial da cidade.
A cidade enquanto património, com
suas ruas, praças, jardins e parques, ao transmitir-nos de forma subtil, quer a
noção da cronologia temporal das construções sem especial relevo
arquitectónico, quer a noção do modelo de evolução política, social, económica
e cultural das sucessivas gerações de habitantes, exige aos seus gestores uma
renovada atenção.
Por um lado, e de acordo com
Sharpley[2] , porque as razões de atracção de
destino do turismo cultural se situam, cada vez mais, nos elementos menos
tangíveis da cultura, modo de vida e expressão das populações, nomeadamente,
nos seus valores, costumes, música, língua, folclore, artesanato, gastronomia e
festividades.
Por outro lado, porque as
motivações catalogadas por Swarbrook[3]
para explicar o contínuo crescimento do turismo cultural caracterizam o homem
do nosso tempo - Um mais elevado nível de educação do público em geral, uma
maior divulgação pela comunicação social, com destaque para a televisão, de
temas culturais e do património mundial, a apreciação do status que este
turismo acarreta, o crescente desejo de transformar o período de visita numa
experiência enriquecedora -estarão na base do crescimento verificado.
Assim, o bom estado de
conservação dos imóveis, o nível de limpeza da cidade, a eficiência da remoção
do lixo urbano, o estado do pavimento de passeios e arruamentos, a qualidade do
equipamento urbano, o tipo de atividade e de entretenimento quer nas áreas urbanas
quer nos parques, urbanos ou não, o nível de iluminação e a existência de
acolhedores locais de sociabilização, são fatores de atratividade que valorizam
a especificidade cultural e patrimonial da cidade.
Simultaneamente, o bom tratamento
dos fatores de atratividade, contribui para o aumento de coesão da comunidade
reforçando o sentimento de identificação com o seu património. As populações,
valorizando-o na sua diversidade, contribuem para uma correta caracterização
dos lugares e para o aproveitamento do seu valor como recurso económico.
Contudo, devemos ter presente que
o património por si próprio não se transforma num destino turístico.
Se não tivermos o cuidado de
recolher e registar os dados relativos ao património, não teremos os recursos
documentais e de informação que nos permitam difundir e comunicar a sua valia e
existência. A falta de informação, que gera ignorância, é um meio eficaz para
que o património seja inacessível.
Se nos permitirmos menor controlo
das atuações de desenvolvimento (ou assim consideradas), estaremos a contribuir
para uma degradação da qualidade e da importância deste recurso que, desse
modo, vai ficando menos acessível (apetecível). Interrogo-me sobre o impacto
que as últimas construções na envolvente do Mosteiro da Batalha terão no
turismo cultural das gerações futuras. E, também, sobre qual o impacto neste
turismo, se a desnudada colina na envolvente do Convento de Cristo não for
reflorestada e lá surgir, p. ex., uma extração de inertes?
Conclusão
O contínuo alargamento do
conceito de património e a crescente exigência qualitativa do turismo, com
relevo para os elementos menos tangíveis da cultura das populações destino,
reforçam a necessidade, bem presente ao longo deste texto, de uma informação de
qualidade, bem como da sua boa comunicabilidade.
Trata-se de promover, por
técnicos qualificados e com capacidade de comunicação, uma interpretação do
património que assegure ao turista o desenvolvimento de uma sensação de vivida
interação cultural.
Assim se incrementará um
crescimento sustentado do turismo e dos recursos económicos das populações. Só
deste modo teremos, verdadeiramente, um Património Acessível.
Nota final: Este texto foi
produzido inicialmente durante o exercício das funções de Diretor da DGEMN_
Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
[1] Taylor, R.B., Human territorial functioning: An empirical,
evolutionary perspective on individual and small group territorial
recognitions, behaviors, and consequences. Cambridge University Press, 1988
[2] Sharpley, Richard. Tourism and Society. Elms Publications, 1994
[3] Swarbrook, J. The Future of the Past: Heritage Tourism in 21th
Century. In Tourism: The State of the Art.
Edited by A. V. Seaton. John Wiley and Sons, 1994
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