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UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

  Por Galopim de Carvalho  Professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Geologia e Sedimentologia. Foi...

quinta-feira, 29 de março de 2018

PATRIMÓNIO ACESSÍVEL



Por Vasco Costa
Ex Diretor Geral da DGEMN
                                                        Melhor é duvidar do que atrevidamente, sem descrição, determinar” (EL-Rei D. Duarte, Leal Conselheiro, cap.37)

Acessibilidade. Conceitos
A acessibilidade ao património está diretamente ligada à evolução e modelo da nossa sociedade que, apenas a partir dos últimos anos do séc. XIX, vem colocar o património na sua lista de prioridades. Diferenciado, no tempo, foi o modo como cada país reconheceu a importância do património e o integrou nas políticas sociais, económicas e culturais.

Hoje, no caminho para uma sociedade de inclusão, marcamos como objectivo a noção de património para todos. Está em causa o acesso dos cidadãos que, transitória ou definitivamente, sejam portadores de algum grau de diminuição das suas capacidades mentais, sensoriais, visuais, auditivas e locomotoras.
Contudo, para que o património seja verdadeiramente acessível, temos que o entender de uma forma global, desde os seus aspetos socioculturais e económicos aos processos construtivos e funcionais. Para este entendimento é indispensável equacionar e encontrar soluções para algumas questões do nosso modelo social.
Em primeiro lugar o facto de a formação obtida em ambiente escolar tender a moldar as mentalidades para uma excessiva valorização do útil e do utilizável.
É certo que o reconhecimento e deificação do sucesso pela sociedade, medido em termos económicos, contribuindo para a desvalorização dos valores da história, filosofia, literatura, urbanismo, arquitetura, arte e cidadania, enquadram e, indiretamente, orientam a ação das escolas e a atitude dos cidadãos.
Em segundo lugar as assimetrias socioeconómicas existentes, com número significativo de famílias vivendo abaixo ou no limiar da pobreza.
As consequências da primeira questão acabam por reforçar este padrão, por não permitirem uma clara perceção do valor do património como recurso para o crescimento económico e desenvolvimento sustentado.
 Em terceiro lugar a questão do acesso à informação.
 Este acesso, ou é negado pela sobreposição das consequências das duas primeiras questões, ou é dificultado pela escassez, quer de registos organizados (bases de dados), quer de estudos e projetos de interpretação e de Ações de valorização dos conteúdos daqueles registos.
Constituindo o património o traço essencial da Humanidade e da Civilização a que pertencemos, pela expressão de valores da história, filosofia, literatura, arquitetura, arte e cidadania, e pelo reflexo da evolução social, política, económica, cultural e ética, equacionar e resolver as três questões enunciadas é abrir o caminho para um património acessível.
De outro modo, ficaremos limitados a deslizar, sem rumo, pela sua superfície.
Acessibilidade ao bem. Intervenções
Sendo o património um bem único e perecível, deverá ter a sua diversidade valorizada através de estudos e projetos próprios, no desenho das soluções para eliminação das barreiras relativas às restrições que afetem o cidadão. Devem ser evitadas intervenções padronizadas
Essas intervenções devem, ainda, garantir que não colocam em risco os valores arqueológicos, históricos, arquitetónicos e ambientais que caracterizam o bem patrimonial objeto de intervenção.
Significativos obstáculos para que o património seja acessível, após as intervenções para a sua adaptação, são materializados quer pela falta de informação, ou por existência de informação em suporte inadequado, quer pelo desconhecimento das necessidades específicas de cada tipo de incapacidade, traduzido em falhas de projecto ao nível da circulação, sinalização e iluminação.
Perante a diversidade patrimonial - sítios arqueológicos, monumentos (imóveis e estruturas), jardins (públicos e privados com acesso), parques naturais e reservas da natureza, áreas com trabalhos de conservação arquitetónica - e as exigências específicas dos cidadãos com algum tipo de restrição, o estabelecimento de um regulamento formal com critérios de intervenção e de definição de prioridades, seria valioso contributo para um património acessível.
Admitimos que um determinado bem patrimonial seja acessível apenas em parte da sua extensão e que uma intervenção de adaptação possa não ser realizada por questões técnicas de conservação ou por considerações de ordem económica.
Acessibilidade e turismo
As mais recentes tendências do turismo cultural traduzem uma crescente apreciação pelos valores da cultura dos povos destino. Este fenómeno, que sublinha um maior grau de conhecimento e de exigência de envolvimento destes turistas, foi consagrado ao mais alto nível internacional como uma nova orientação cultural, traduzida na expressão “less museums, more squares”.
Esta extensão do conceito de património, que vem valorizar a integração do património de cariz histórico ou monumental no território da cidade, obriga-nos a aprofundar estudos que conduzam a uma melhor intervenção no território urbano de modo a podermos compatibilizar as três dimensões territoriais definidas por Taylor[1]- conhecimento ou experiência territorial, emoções ou afetos e comportamentos ou tendências - com a crescente funcionalização patrimonial da cidade.
A cidade enquanto património, com suas ruas, praças, jardins e parques, ao transmitir-nos de forma subtil, quer a noção da cronologia temporal das construções sem especial relevo arquitectónico, quer a noção do modelo de evolução política, social, económica e cultural das sucessivas gerações de habitantes, exige aos seus gestores uma renovada atenção.
Por um lado, e de acordo com Sharpley[2] , porque as razões de atracção de destino do turismo cultural se situam, cada vez mais, nos elementos menos tangíveis da cultura, modo de vida e expressão das populações, nomeadamente, nos seus valores, costumes, música, língua, folclore, artesanato, gastronomia e festividades.
Por outro lado, porque as motivações catalogadas por Swarbrook[3] para explicar o contínuo crescimento do turismo cultural caracterizam o homem do nosso tempo - Um mais elevado nível de educação do público em geral, uma maior divulgação pela comunicação social, com destaque para a televisão, de temas culturais e do património mundial, a apreciação do status que este turismo acarreta, o crescente desejo de transformar o período de visita numa experiência enriquecedora -estarão na base do crescimento verificado.
Assim, o bom estado de conservação dos imóveis, o nível de limpeza da cidade, a eficiência da remoção do lixo urbano, o estado do pavimento de passeios e arruamentos, a qualidade do equipamento urbano, o tipo de atividade e de entretenimento quer nas áreas urbanas quer nos parques, urbanos ou não, o nível de iluminação e a existência de acolhedores locais de sociabilização, são fatores de atratividade que valorizam a especificidade cultural e patrimonial da cidade.
Simultaneamente, o bom tratamento dos fatores de atratividade, contribui para o aumento de coesão da comunidade reforçando o sentimento de identificação com o seu património. As populações, valorizando-o na sua diversidade, contribuem para uma correta caracterização dos lugares e para o aproveitamento do seu valor como recurso económico.
Contudo, devemos ter presente que o património por si próprio não se transforma num destino turístico.
Se não tivermos o cuidado de recolher e registar os dados relativos ao património, não teremos os recursos documentais e de informação que nos permitam difundir e comunicar a sua valia e existência. A falta de informação, que gera ignorância, é um meio eficaz para que o património seja inacessível.
Se nos permitirmos menor controlo das atuações de desenvolvimento (ou assim consideradas), estaremos a contribuir para uma degradação da qualidade e da importância deste recurso que, desse modo, vai ficando menos acessível (apetecível). Interrogo-me sobre o impacto que as últimas construções na envolvente do Mosteiro da Batalha terão no turismo cultural das gerações futuras. E, também, sobre qual o impacto neste turismo, se a desnudada colina na envolvente do Convento de Cristo não for reflorestada e lá surgir, p. ex., uma extração de inertes?
Conclusão
O contínuo alargamento do conceito de património e a crescente exigência qualitativa do turismo, com relevo para os elementos menos tangíveis da cultura das populações destino, reforçam a necessidade, bem presente ao longo deste texto, de uma informação de qualidade, bem como da sua boa comunicabilidade.
Trata-se de promover, por técnicos qualificados e com capacidade de comunicação, uma interpretação do património que assegure ao turista o desenvolvimento de uma sensação de vivida interação cultural.
Assim se incrementará um crescimento sustentado do turismo e dos recursos económicos das populações. Só deste modo teremos, verdadeiramente, um Património Acessível.

Nota final: Este texto foi produzido inicialmente durante o exercício das funções de Diretor da DGEMN_ Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais



[1] Taylor, R.B., Human territorial functioning: An empirical, evolutionary perspective on individual and small group territorial recognitions, behaviors, and consequences. Cambridge University Press, 1988
[2] Sharpley, Richard. Tourism and Society. Elms Publications, 1994
[3] Swarbrook, J. The Future of the Past: Heritage Tourism in 21th Century. In Tourism: The State of the Art. Edited by A. V. Seaton. John Wiley and Sons, 1994

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