Por Maria José Varandas
CFUL- Portugal
Resumo
A máxima leopoldiana, “Algo é bom
quando preserva o equilíbrio, a integridade e a beleza da comunidade biótica”,
constitui, em simultâneo, o corolário normativo da exposição do autor e a sua
tese nuclear, guiando a escrita do ensaio, Sand
County Almanac, no propósito demonstrativo de que a diversidade e a
integridade ecológicas são inseparáveis da beleza natural, e, nesse sentido,
afirmam-se como princípios da acção correcta, estruturadores da relação do
humano com a terra
Palavras-chave: Leopold, ética da terra, estética da
terra, valor estético, valor ecológico
1
Num ensaio
crítico de 1966, o filósofo escocês Ronald Hepburn[2]apresenta as razões para o
desprezo que a estética contemporânea dirige ao belo natural defendendo que tal
desprezo é, ipsis verbis, algo muito
mau.
Se, de facto, a partir do século XIX, a vulgarização da beleza “pitoresca” do mundo natural o deixou de fora de uma teoria estética inteiramente devotada à reflexão sobre a arte, assinala-se, porém, que, em paralelo a esta tendência blasé e urbana da Estética, o tema do belo natural não deixou de ser declinado em conjunção com o bem numa linha de pensamento cujas raízes mergulham na antiguidade e que, ainda no século XIX, informou o pensamento dos pioneiros ambientalistas abrindo caminho para a compreensão da estética natural no contexto da acção preservacionista. Thoreau, Emerson e Muir exploraram no novo Mundo não só a riqueza incorrupta das suas múltiplas formas geológicas vegetais e faunísticas, como também as modalidades do pensamento que associa o belo natural ao agir, desbravando a via que viria em meados do século XX a impor um novo contexto à reflexão ética e estética - a natureza.
Se, de facto, a partir do século XIX, a vulgarização da beleza “pitoresca” do mundo natural o deixou de fora de uma teoria estética inteiramente devotada à reflexão sobre a arte, assinala-se, porém, que, em paralelo a esta tendência blasé e urbana da Estética, o tema do belo natural não deixou de ser declinado em conjunção com o bem numa linha de pensamento cujas raízes mergulham na antiguidade e que, ainda no século XIX, informou o pensamento dos pioneiros ambientalistas abrindo caminho para a compreensão da estética natural no contexto da acção preservacionista. Thoreau, Emerson e Muir exploraram no novo Mundo não só a riqueza incorrupta das suas múltiplas formas geológicas vegetais e faunísticas, como também as modalidades do pensamento que associa o belo natural ao agir, desbravando a via que viria em meados do século XX a impor um novo contexto à reflexão ética e estética - a natureza.
Justamente neste contexto, a
Estética Ambiental constitui um emergente campo reflexivo, recrudescente com a
crise ecológica, que enfrenta, todavia, claras dificuldades em exprimir-se de
forma coerente e eficaz na prática ambientalista. Com efeito, embora o belo natural
se imponha em algumas abordagens de ética ambiental, nomeadamente na de Aldo
Leopold, a argumentação que sustenta a acção de preservação de ecossistemas ou
áreas naturais específicas, convoca, prioritariamente, os valores ecológicos
(como o da biodiversidade, ou os da integridade e qualidade ecológicas), sendo,
a maior parte das vezes, omissa em relação ao seu valor estético. Uma omissão
que parece ignorar a história da acção ambientalista demonstrativa que a
adesão, o sucesso e as decisões conservacionistas decorrem mais frequentemente
pelo lado da estética natural do que pelo lado da ética, mais em função da
beleza da natureza do que da obrigação moral dos agentes, como o filósofo
ambiental Baird Callicott[3] testemunha:
“No que toca
à conservação e gestão de recursos, a estética natural tem sido historicamente,
na verdade, muito mais relevante do que a ética ambiental. grande parte das
decisões conservacionistas foram motivadas mais pela estética do que pelos
valores éticos, mais pela beleza do que pelo dever.” Callicott, 2008:107.
2
Recuperando o traçado geral de uma tradição
filosófica que, como constatou Hepburn, foi votada na contemporaneidade a um
injustificado obscurecimento, a questão que se coloca é, então, a de averiguar
que premissas concorrem para a consideração do belo natural como um argumento
efectivo na prática ambientalista, a par com os valores ecológicos.
Com efeito, parece-nos intuitivo que uma floresta
devastada e corroída por chuvas ácidas, imediatamente, choca pelo efeito
anti-estético. A generalização hipotética deste estado de devastação a uma
escala global, devolver-nos-ia, certamente, a imagem de um mundo onde não haveria
beleza e de onde a vida se esvaeceria. Lembramos a propósito o título da
influente obra de Rachel Carson publicada em 1963, Silent Spring. Para transmitir o dramático grau de destruição nos
ecossistemas e na biodiversidade provocados pelo uso abusivo de pesticidas
químicos, a autora convoca uma poderosa metáfora estética, porquanto com ela se
evoca o silenciar do canto dos pássaros. No imaginário colectivo, as componentes
estética e biológica são indistinguíveis e intrínsecas ao conceito de Primavera
– a cor, os sons, os cheiros, o movimento, assinalam o renascimento da vida em
toda a sua pujança. Uma Primavera silenciosa é, pois, uma Primavera sem vida;
e, tal, soa como uma contradição nos termos. Com a autora, também presumimos
que o grau desmedido da interferência humana no ritmo próprio da natureza
contém uma ameaça que conjuga, em simultâneo, a perda de beleza e a perda de
biodiversidade. Psicologica, afectiva e cognitivamente ambas as dimensões estão
ligadas e a sua degradação suscita idêntica preocupação e temor. Talvez porque,
verdadeiramente, a natureza não se possa reduzir à paisagem que se olha do
miradouro como se contempla um quadro numa galeria. Talvez porque, de facto, o
belo natural não seja o pitoresco, i. e., um corpo inerte com as cores de uma
pintura. Talvez porque, isso sim, a beleza da natureza seja vida, pulsante,
dinâmica, rítmica, em incessante processo evolutivo e criativo que, através da
desordem, persegue a ordem e a harmonia.
Esta nossa convicção
vem firmemente escorada no enquadramento teórico definido por Aldo Leopold que,
em traços gerais, afirma a ética da terra como sendo também uma estética da
terra.
Na linha de
Thoreau e Muir, Aldo Leopold, um professor de recursos cinegéticos da
Universidade de Wisconsin, escreve o livro Sand
County Almanac[4], publicado em 1949,
um ano após a sua morte, onde defende a conexão da estética e da ética no comum
propósito de salvação da terra e do humano.
Quando
Leopold declara que, “Algo é bom quando tende a preservar o equilíbrio, a
integridade e a beleza da comunidade biótica” (Leopold, 2008:226), condensa
diferentes planos axiológicos num mesmo horizonte significativo – se a beleza
se impõe como presença no mundo, ela deve constituir-se, por isso, como
fundamento de moralidade, um imperativo do agir. Trata-se de um imperativo com
carácter de urgência, dado o grau de ameaça crescente introduzido por opções
técnicas e politico-económicas irresponsáveis, que encaram a terra como um
recurso e não como um bem em si mesmo:
“Quando vemos a terra como uma
comunidade à qual pertencemos, podemos começar a usá-la com amor e respeito.
Não há outro caminho para que a terra sobreviva ao impacto do homem mecanizado,
e para que nós dela possamos retirar a colheita estética com que pode
contribuir para a cultura ao abrigo da ciência (...) Estes ensaios procuram
fundir esses três conceitos.” Leopold, 2008:22.
A apreciação
estética da natureza é uma constante no Sand County Almanac, através de
descrições de indisfarçável admiração perante aspectos naturais, nem sempre
considerados belos pelo público que procura neles aguarelas ou pinturas a óleo
e que encara a natureza como uma galeria de arte, mas que, na prosa de Leopold,
ganham uma vividez e uma específica tonalidade estética sob a iluminação do
conhecimento ecológico que lhes desvenda a narrativa e o significado.
Genericamente, a escrita dos ensaios
é ritmada a dois tempos - num primeiro momento, a exaltação da beleza natural
intocada é reveladora da presença tangível da estética natural, como fonte de
gratificação e liberdade, para de imediato se lhe opor o agir irresponsável
que, por insensibilidade e ignorância, se apresenta como um factor de
desfiguração da harmonia emergente da inter-relação comunitária entre humanos,
não humanos e elementos naturais. Sublinhamos ainda que as impressivas e
cambiantes descrições da fauna e da flora ou de formações vegetais e geológicas
que percorrem o livro do princípio ao fim, transmitem claramente a convicção do
autor de que a literacia ecológica amplia significativamente a sensibilidade às
realidades naturais e à beleza que nelas reside.
Leopold não se cansa em repetir
que o agir insensato é fruto da ignorância ecológica, a causa primeira da
insensibilidade que o homem “mecanizado” alardeia na sua relação “não amável” (unlovely) com a riqueza múltipla das
configurações naturais e com o sentido profundo que cada uma delas carrega. Por
isso, há que mudar o paradigma - de um estado
de egocentrismo especista para um outro, superior e ecologicamente esclarecido,
patamar de moralidade.
A transição anunciada por Leopold, pela qual o
humano deve passar de conquistador a membro e cidadão da terra, surge na sua land
ethic como condição primeira de um novo modelo de realidade e do homem, um
novo desenho axiológico, ético e estético, implicando uma reconfiguração do
universo mental antropocêntrico. A metáfora da comunidade, que o autor subtrai
à Ecologia, representa de modo exemplar a ética
da terra, pois a sua fertilidade semântica traduz, em essência, a nova
visão do humano e do agir que capta o ser do mundo como diferenciação,
afinidade, parentesco, entendendo a dinâmica própria desse ser no mundo como
interdependência, forjada e entretecida nos vínculos que ligam todos a todos, e
todos ao Todo. O reconhecimento dos elos que encadeiam os seres e os radicam
num destino comum - a odisseia evolutiva terrestre – deve, segundo Leopold, potenciar
o amor, o cuidado e a bio-empatia, sentimentos cuja expressão consciente
mandata o dever de preservar o equilíbrio, a integridade e a beleza da
comunidade biótica. A beleza do mundo e no mundo impõe-se, assim, ao homem e ao
agir - o belo está aí diante de nós, surge no horizonte natural, irradiante,
multiforme, omnipresente, propiciando a intensificação da afectividade e
convidando ao bem. Daí que possamos afirmar que a ética da terra de Leopold
emerge de uma estética da terra, porquanto, neste autor, a experiência da
beleza da natureza é uma experiência duplamente significativa. Não só porque
ela encerra uma narrativa ecológica que constitui o “chão” da nossa humanidade
e, portanto, situa-nos no tempo e no espaço; mas também porque ela vem sempre
em íntima articulação com o interesse moral. Leopold demonstra-o em múltiplas
passagens do seu livro - a beleza natural
conta sempre uma história evolutiva e apresenta-se sob a constante ameaça da cupidez
humana, ecologicamente ignorante.
3
Na actualidade, o grau alarmante de perda da
biodiversidade e de alterações ambientais antropogénicas com óbvias implicações
no equilíbrio e beleza dos ecossistemas, constituem razões justificadas para
considerar a mensagem de Leopold. Atente-se a estas duas imagens:
A beleza deste recife de coral, um ecossistema
fulgurante em biodiversidade, exprime inequivocamente a vida que o habita. As alterações
climáticas de origem antropogénica estão, como sabemos, a provocar a sua morte.
O efeito visível desse facto dá razão a Leopold quando encara a estética
natural como história, como vida:
Este é um exemplo, entre muitos outros possíveis,
que ilustra as relações abordadas neste artigo entre a estética natural e a
biodiversidade; entre a estética e a ética ambientais; entre a beleza da
natureza e a acção ambientalista.
Em suma, com
Aldo Leopold, defendemos que é urgente compreender a beleza natural muito para
além do seu significado paisagístico e pitoresco, como se se tratasse de um
objecto artístico. E que é forçoso entendê-la como expressão criativa da Vida,
como vida. Neste sentido, a experiência estética da natureza é uma experiência
que convoca, necessariamente, a determinante ética. Evocando o bem - o
equilíbrio e a integridade bio-ecológicas - , a beleza da natureza incita ao agir
responsável e esclarecido.
Maria José Varandas
Membro do Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa
FLUL
Lisbon,
Portugal
Doutoramento
e Mestrado em Filosofia, no ramo de especialização de Filosofia da Natureza e
do Ambiente, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro do
Centro de Filosofia da FLUL. Presidente da Sociedade de Ética Ambiental. Autora
de várias publicações na área da ética ambiental (artigos e livros).
Coordenadora da antologia Éticas e Políticas Ambientais com Cristina Beckert.
Organizadora e co-organizadora de seminários sobre a temática ambiental. Conferencista em diversas instituições sobre ética e ambiente.
[1] Excerto
adaptado do capítulo com o mesmo título in 2013, Para Uma Etica do
Território, ed. J. Gorjão Jorge, FAUL, pp 45-51.
[2]
Hepburn, Ronald. Versão portuguesa: 2011, “A estética contemporânea e o
desprezo pela beleza natural”, trad. Tiago Carvalho, in Serrão, A. V. (coord.),
Filosofia da Paisagem, uma Antologia, Lisboa: CFUL, pp 230-255.
[3] Callicott, Baird, 2008, “Leopold’s
Land Aesthetic” in Carlson&Lintott (ed), Nature Aesthetics and
Environmentalism, From Beauty to Duty, New York: Columbia Press University,
pp.105-118.
[4] Versão
portuguesa: Leopold, Aldo, 2008, Pensar Como Uma Montanha, trad. Edições
Sempre-em-Pé, Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé.
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